Maio 28, 2021

sofia


contos | 16 min de leitura 📖

Sofia é um conto inspirado na cultura cyberpunk em um futuro distópico. Criado com o incentivo de um desafio no Twitter e também dedicado ao apoiadores mensais.

Um agradecimento especial para toda a galera que deu like no tweet e tornou essa publicação realidade e também as Apoiadoras. <3

Sugestão para acompanhar a leitura:



Sofia

I.

As luzes do palacete criavam um show psicodélico de cores que mergulhavam pela janela se espalhando pela sala do estúdio, pintando com cores quase abstratas e serpenteadas. Os hologramas se estendiam tanto que pareciam invadir as paredes vizinhas, mas se desfaziam em fragmentos pixelados antes mesmo de atingi-las, como uma estrela cadente que morre antes de tocar o chão. Do lado de dentro da grossa janela que protegia o estúdio das adversidades de um mundo tóxico, Sofia observava, com um olhar vago e monótono, a agitação desfigurada da sociedade caótica sob seus pés, corpos equivocadamente livres e tão semelhantes quanto as gotas da garoa prateada que se chocava contra o vidro. Ela tentava imaginar os sons da cidade, vozes que oscilavam em tons e idiomas que ela nem sequer conhecia, apitos e sirenes misturadas a motores roucos e poderosos, gritos de desconhecidas vítimas da noite, cochichos sensuais entre cúmplices do pecado e, eventualmente, clones metálicos ou orgânicos de animais que não passavam de uma sombra do que Sofia imaginava do passado que nunca viveu.

 Seus olhos se ajustaram, com lentes nanoangulares do tipo popular entre a elite, flagrando a imagem mais próxima ofuscada pelo seu bafo. Por um momento, seu reflexo parecia se desfazer em um movimento descompassado de pequenas ondas sobre a pele, os lábios incharam sumindo com as linhas finas e gentis, as bolsas sob seus olhos pareciam se desfazer como as sardas e o tom vermelho do seu cabelo, a maçã se destacava se prestasse mais atenção e esses pequenos detalhes mutáveis que se espalhavam por todo o seu corpo como se ela própria fosse uma miragem oscilante no deserto escuro e neon.

Sofia suspirou como se carregasse um peso anômalo sobre seus ombros. Além da realidade como percebia ordinariamente, ela pensou se poderiam ser pelas incontáveis horas mergulhadas na virtualidade do xCeos, algo que a fazia se sentir cansada, mas não cabia em palavras, ela apenas sentia. Por muitas vezes ela se pegava pensando se aquele sentimento não era pura curiosidade, talvez um descaso por motivos ocultos em seu inconsciente. Fosse como fosse, ela suspirou outra vez.

— Você está se recuperando bem. Mas por que não oculta a cicatriz? — comentou um homem se aproximando. Sofia nem sequer se virou.

— Ela me deixa fodona — respondeu. O homem riu. Ela o encarou com um meio sorriso. Ele retribuiu e passou cuidadosamente a ponta do dedo sobre a cicatriz que se abria sob os olhos até o queixo de Sofia.

— Não entendo o que você vê de tão interessante lá embaixo.

Sofia desfez sua atenção, pressionando a palma direita sobre seu diafragma e suspirando.

— Nada me interessa lá — disse com desdém.

— Há muito mais do que imaginamos nesse mundo, minha filha — disse cabisbaixo, também olhando pela janela. —  Lúcio Avati, eu sempre sonhei que meu nome traria algo benéfico, sabe, mas parece que a ascensão exige brutalidade.

Sofia encarou o pai, que permaneceu perdido em pensamentos.

— Do que você está falando, pai?

— Hoje eu não quero que você vá à reunião! — Ele exigiu em um tom ríspido.

— Mas eu sou diretora no Conselho... — Antes que pudesse terminar, três pessoas entraram pela porta principal sem cerimônias, entre elas, o motorista de Lúcio.

— Precisamos ir, imediatamente, senhor! — Sofia sentiu urgência quando a última palavra foi dita. Seu pai parecia carregar lástimas por antecedência, uma premonição inconsciente.

— Sempre torcer pelo melhor, não é? — Lúcio questionou com um sorriso frouxo enquanto acariciava o rosto de sua filha com todo o carinho do mundo. — Não vá, eu tenho um negócio inacabado para resolver antes da reunião do Conselho.

Ela viu Lúcio partir sem entender o que havia acontecido, mas por mais que sentisse traços de preocupação, ela não se importava. Amava seu pai, mas estava tão habituada às mentiras que possíveis verdades pareciam enganações esmagadoras.

Sofia caminhou até uma poltrona larga ao lado da janela, observando as ruas e a chuva. Jogou-se na poltrona e acendeu um cigarro. Coçou os olhos que dispararam em um tique sutil que voltava ocasionalmente, e sentiu uma saudade familiar, mas entorpecente, talvez incômoda, tanto quanto uma coceira no fundo da garganta. Desfez-se dos sapatos e calçou um par de coturnos. Bebericou um copo cristalino de conhaque que descansava sobre a mesa ao lado da poltrona e levantou-se.

Agarrou um sobretudo preto vinílico e jogou o cabelo para trás, pronta para encarar a selva. A porta bateu quando ela saiu, deixando apenas o silêncio em seu espaço seguro.

II.

Sofia passou pelo salão principal do prédio sem dar atenção para ninguém. Não que houvesse muitas pessoas lá, o lugar era tão grande e vistoso que duas pessoas poderiam facilmente se perder uma da outra se decidissem explorar todos os corredores. Havia uma certa urgência em seu âmago, um grito desesperado por libertação. Ela fechou seu sobretudo ao sentir o primeiro sopro gelado de vento entrar pela porta quando um casal passou adentrando a instalação. Ela queria correr, mas ao mesmo tempo não queria parecer desesperada.

Um rapaz empurrou a grande porta de vidro para que Sofia saísse. Ela parou por um momento sentindo a chuva encharcar seu rosto, seus olhos se acostumaram rapidamente com o contraste violento entre a escuridão e as luzes dos painéis, hologramas, veículos e tantos outros pontos de poluição visual que a cidade poderia oferecer. A urgência tomou tons de ansiedade. Continuou caminhando até o outro lado da calçada, atravessou sem nem dar atenção à própria segurança. Buscava por um transporte, precisava de um pouco de abstração. Enquanto sinalizava para um táxi, da sombra de um beco próximo saiu uma silhueta esguia. Seus passos tortos pareciam pisar em ovos e a fumaça do bueiro a seguiu como uma aura desgarrada. Sofia não se mexeu, apenas se atentou. A pessoa caminhou em breves cambaleios em sua direção, aproximando-se o suficiente para tentar não espantar a moça rica que estava em sua frente.

— Por favor, moça, por favor — disse a pessoa com a voz trêmula e rouca, uma mulher. Ela estava com os pés nus, canelas à mostra e claras marcas de feridas, a doença do pó. Mantinha-se  com os braços envoltos ao corpo, enrolada, para se aquecer, em uma manta plástica do tipo que usam em acampamentos militares nos desertos. Sofia conhecia a manta, tinha a etiqueta da empresa de sua família.

“Avati Inc.”

— Eu não tenho nada pra você! — Ela exclamou sem nenhuma expressão.

— Um trocado, comida ou um pouco de Q. Eu sei que você tem, só um pouco, por favor.

Sofia encarou a pedinte, sentiu um embrulho no estômago ao ver o resto esquelético feminino deformado pelo consumo excessivo de drogas e também pela falta delas. A pele carecia de vida, oscilando entre tons escuros de bege e cinza. O olhar profundo possuía um brilho fraco, já sem cores que permitissem dizer que  eram olhos humanos. Mesmo encharcada, a mulher exalava um cheiro forte de enxofre, fluído graxo e alguma coisa que Sofia não conseguia identificar.

— Não chegue perto de mim, você não vai querer arriscar — disse Sofia agora em um tom agressivo. O sinal do outro lado da calçada abriu e logo algumas pessoas começaram a passar entre as duas mulheres. A pedinte baixou as mãos e a cabeça, afastando-se oculta novamente na sombra do beco. Sofia respirou fundo e pegou o táxi.

Sofia enviou o endereço para o navegador do veículo, enquanto, no caminho, ela se perguntava como a sociedade havia chegado naquele estado deplorável, lamentável e assustador. Passou por algumas áreas pobres da Cidade Baixa, consumidas pelo breu e pela violência, enquanto, nos centros, os sequelas se empilhavam nos becos, viadutos e túneis, despedaçando uns aos outros e aguardando a próxima vítima vacilar. Uma selva de carbono, metal e fluidos.

Ao chegar no seu destino, ela saiu já tomada por uma fúria visceral, seus batimentos estavam tão acelerados que quase descompassavam. Ela foi em direção à boate, passou direto pela fila, entrando como VIP após cumprimentar o segurança. Ela ignorou o estrobo e as luzes frenéticas, trombou com ombros alheios como se os levasse junto se vacilassem e, quando flagrou a porta da sauna, já se despia antes mesmo de atravessá-la. Largou as roupas em um canto, dirigiu-se até uma das pequenas docas fitando os demais burgueses que se deleitavam em seus prazeres mundanos e se sentou. Deu um suspiro profundo e agarrou um frasco que descansava em um aparato na parede. Com o dedão ela empurrou o topo do frasco, quebrando-o, e uma substância exalou se misturando à neblina densa. Todos os poros de seu corpo se abriram absorvendo a quimera.

Ela fechou os olhos relaxando por um momento. Sentiu, então, um toque quente em seus joelhos e que correu rápido sobre suas coxas. Ela flagrou Manae, a amante virtuosa por quem ela ansiava nos breves momentos em que viajava na frenesi da sauna. A garota nua encostou todo o corpo sobre Sofia, até que seus lábios se tocaram. Enquanto o beijo ganhava intensidade, seus corpos se adaptavam um ao outro. Sofia sentiu os seios de Manae crescendo em suas mãos, enquanto a garota fitava os olhos de Sofia tomando tons de fogo, seu cabelo assumindo formas cacheadas de cor preta como o céu sem estrelas;  o rosto de Manae se redesenhava com curvas orientais.

Sofia saiu da boate uma hora depois, com um péssimo pressentimento. Seu coração ainda palpitava e ela ainda estava dormente das intensas doses de drogas. Na calçada, ela encarou a fila que parecia aumentar cada vez mais. Havia todo o tipo de gente: de pobres que roubavam para se drogar naquele maldito quarto infernal a mauricinhos que esbanjavam dinheiro agitando a festa também na rua. Ela checou os bolsos do sobretudo, aliviada ao sentir os frascos reservados. Então pegou um táxi e embarcou em direção ao domínio da corporação Avati.

III.

Os gritos de Lúcio ecoavam pelo corredor da cobertura, enquanto os membros do Conselho apenas o encaravam com desdém.

— Nós não permitiremos que o seu legado caia, Lúcio, mas chegou a sua hora. Você vai assumir as consequências e não terá nenhuma ligação com a corporação.

— Vocês querem me fuder! Isso não vai apenas arruinar minha vida — Lúcio deu uma pausa e socou a mesa enquanto se inclinava sobre ela. Os seguranças, que estavam incomumente na sala, deram um passo em sua direção. Lúcio apenas os encarou, incrédulo. — Eu dei minha vida pra criar esse império, vocês não vão se safar dessa merda!

— Você fez a sua parte, Lúcio, mas deveria ter jogado a toalha antes de começar a agir sem consultar o Conselho — disse uma mulher com tom imponente sentada na outra ponta da mesa. Ela apertou os olhos quando ele a encarou, sua expressão era tão desafiadora quanto todos os aspectos estéticos daquele lugar, um berço de guerras. — Esse é seu último papel, e então deverá sair de cena, você sabe o que deve fazer.

Lúcio cerrou os dentes e uma aflição descontrolada brotou em seu interior fazendo-o suar frio. Ele encarou todos os presentes e deu as costas, mas não antes de dizer:

 —Vocês vão pagar!

No corredor, ele flagrou Sofia. Seus olhos se arregalaram e a aflição ganhou sentido. Ele a agarrou pelo braço e apressou os passos até o elevador.

— O que está acontecendo, pai?

Ele não respondeu. Ela tentou insistir e ele fez um sinal para que ela permanecesse em silêncio. Pegaram o elevador até o estacionamento. 

O motorista aguardava fumando. Ao ver o patrão se aproximar, ele pareceu entender que algo estava errado, jogou o cigarro para longe e correu para abrir a porta.

— Porra! Porra! — Lúcio repetia enquanto esmurrava as próprias pernas ao sentar no carro.

— Pai! Você está me assustando…

— Para onde, senhor? — perguntou o motorista, encarando-o no retrovisor.

Lúcio parou, ofegante, fitou a face preocupada de sua filha e engoliu seco o desespero que subia como ácido pela traqueia.

— A Latente, Joaquim, vamos para a Latente!

— O que está acontecendo? —  insistiu Sofia.

— Ele me foderam. Todos esses anos, eu não acreditava…

— Tiraram você da mesa?

— A Hochu era uma cilada, Sofia. Eles confiscaram minha posição e demandaram que eu assumisse o acordo.

— Mas foram eles que te enviaram para Taipei!

— Sim, para a jaula dos leões — Lúcio refletiu por um momento. — Há um amigo na Latente que pode nos ajudar, toda a transação foi monitorada, mas acho que só ele pode descriptografar. Se ele fizer isso, eu vou acabar com aqueles desgraçados.

— Você ia sabotar o acordo?

Lúcio encarou Sofia, seu olhar melancólico dispensava explicações.

— Eu recebi uma dica, filha. Mas não esperava que fosse verdade. Nós precisamos apenas sair logo daqui e chegar na Latente, tudo vai ficar bem.

O carro seguiu pela marginal. As vias livres os favoreciam em tempo, mas Lúcio estava inquieto, olhando para trás o tempo todo, imaginando que alguém pudesse estar seguindo-os. Atravessaram metade do Centro e, quando o motorista virou a primeira esquina em direção à Baixada, Sofia sentiu um mau pressentimento subindo pela sua espinha como um calafrio: aquela estranha coceira voltou a incomodar, mas ela resistia. O carro saiu da principal, entrando em uma via paralela. Sofia flagrou as luzes dos outros carros ficando para trás enquanto entravam na rua que levava para a Cidade Baixa. Estranhou que um silêncio mórbido houvesse recaído nas redondezas, assim como a paisagem não exibia nada além do breu. Ela encarou seu pai com um olhar assustado. Ele apenas moveu a cabeça de um lado para o outro e puxou o cinto, prendendo-a. 

Passando por uma passarela, Sofia viu o braço do motorista indo até o outro banco e então seu pai se jogou sobre ele, agarrando o braço que voltava sacando uma pistola. Ela ficou sem reação, enquanto seu pai lutava para impedir que algo lhes acontecesse. O motorista travou o volante com um joelho e pisou no acelerador ao se esticar sobre Lúcio, golpeando-o duas vezes e encharcando o punho com sangue, mas Lúcio não o largava.

O braço com a arma resistia, indo de um lado para o outro em uma disputa de força. O primeiro disparo atravessou o teto, o segundo passou de raspão no ombro de Sofia. Ela gritou, Lúcio golpeou o motorista com a testa. Quando sentiu que ele havia fraquejado, acertou-o outra vez e jogou a ponta de pistola para a têmpora, estourando os miolos do motorista contra a janela.

— Sofia! Sofia! — Ele gritou, fitando a filha com o aperto no coração de quem espera pelo pior.

— Pai! — Sofia apontou para frente.

Um descuido, um momento, um segundo. Um carro que vinha na outra mão bateu de frente com eles. Sofia ficou cega com um clarão e, no instante seguinte, perdeu a consciência enquanto o carro capotava e se despedaçava na via.

IV.

O sol já brilhava e ela sentia dores em todas as partes do corpo em que conseguia sentir alguma coisa. Esforçou-se para sair do veículo. Sua visão estava um pouco turva quando reconheceu seu pai estirado mais adiante. Ela foi até ele e se agachou sobre uma poça de sangue. Lúcio estava morto, seu corpo frio começava a dar sinais da reação da quimera. Sofia quase engasgou com o choro e perdeu a noção do tempo enquanto se lamentava naquele deserto de concreto.

Minutos depois, ela despertou como se voltasse de um sonho vívido. Ainda horrorizada com a cena devastadora, percebeu algumas pessoas espiando de longe, mas sem fazer nada. Notou também algumas figuras irreconhecíveis que pareciam querer se arriscar a chegar mais perto. Seu coração disparou e ela sentiu o quão nocivo era aquele lugar. De repente, algumas vozes como rosnados se ergueram e pareciam se aproximar. O céu laranja e coberto por nuvens iniciava uma garoa. O odor da quimera exalando do defunto se espalhou pelo ar como o perfume de rosas na primavera.

Um estranho começou a avançar em direção a Sofia. Ela se arrastou o mais rápido que pôde até o canto de um dos destroços do carro, ainda soluçando. Logo outros começaram a se aproximar também e Sofia foi pêga de surpresa ao sentir uma mão apertando seu ombro. Ela se levantou em um pulo e gritou:

— Sai! Sai! Socorro!

O sequela assustado quase caiu para trás. O homenzinho esquelético correu para longe, mas, quando ela se deu conta, uma dúzia de sequelas compactuavam consumindo o corpo de Lúcio.

Sofia se levantou e correu para longe, o máximo que aguentou. Não demorou para ela flagrar, no horizonte, perdido em meio ao deserto devastado do que um dia fora uma vila comercial, um posto de gasolina. Ela insistiu além da sua resistência e, quando conseguiu alcançá-lo, foi direto ao banheiro. Nesse ponto, ela já sentia a abstinência devorando-a de dentro para fora, era o “Rugido da Quimera”, como diziam. Primeiro seus dedos começaram a formigar, dos pés e das mãos. Ela se apoiou sobre a pia e encarou o espelho, observando suas pupilas se dilatarem assumindo tons acinzentados. Um frio súbito cobriu seu corpo como se mergulhasse no ártico e seus músculos se contraíram perante dores que pareciam alfinetadas nos nervos. Ela tateou o sobretudo em busca dos frascos, mas sentiu uma dor aguda e notou que haviam se quebrado e restavam apenas fragmentos estilhaçados cravados em sua pele.

Sofia não havia notado. Talvez fosse todo o preto que vestia. Talvez fosse toda a chuva que se misturava ao sangue. Talvez… não fizesse mais diferença.

Quando os efeitos amenizaram antes da próxima onda de tormenta, ela usou as forças que restavam em seu corpo para se levantar. Caminhou até a loja do posto e passou pela porta deixando um rastro de sangue e digitais. No balcão, uma I.A estava voltada para o painel que exibia uma propaganda de cerveja. A máquina humanóide se voltou para Sofia, estampando os dentes holográficos em um sorriso artificial. Apesar da sua forma humana, a I.A estava sem a pele, coberta apenas pela malha resistiva e quase translúcida, como músculos gelatinosos ou o corpo de uma caravela.

Sofia tossiu.

— Água, dexataurina e uma cápsula kdeoide — pediu com a voz trêmula esticando a palma da mão sobre o balcão.

A I.A se desfez do sorriso, exibindo uma linha azulada que brilhou diante de Sofia, buscando a identificação da retina e da estrutura óssea, tal como o balcão escaneou sua mão. Ela apertou os olhos em reação, as pupilas já haviam dilatado além do limite, as reações cutâneas começavam a se espalhar e a tormenta parecia se aproximar como passos sobre algodão. A audição de Sofia ficou sensível e um chiado ininterrupto se instalou como um sinal emitido do fundo da sua mente; a luz falha do velho posto oscilava causando-lhe náuseas e a poeira e odores de quase abandono do local instigavam o seu desespero.

— Identidade não confirmada. Solicitação indevida notificada às autoridades — notificou a I.A.

Sofia rosnou furiosa.

— Sofia Avati, entregue o que eu mandei! — Ela exclamou, mas a máquina repetiu a mensagem.

A quimera mutando em seu sistema nervoso justificaria a falha na sua identificação física, todo viciado sabia disso, mas ela não imaginou que sua voz ou seu DNA pudessem ser desvirtuados. O desespero então engoliu a razão e Sofia avançou sobre o balcão.

O ataque de fúria foi contido pela I.A, que a empurrou de volta contra o chão. Sofia sentiu o corpo doer. Ela viu a I.A contornando o balcão com um par de algemas e rolou para o lado, forçou os joelhos tentando firmá-los e saiu disparada da loja embarcando em outra desventura sob a chuva ácida.

Dom estava encostado do lado da loja de bebidas. Ele espiava pela janela enquanto seus amigos, lá dentro, surrupiavam garrafas da seção de importados. Do outro lado da rua, outro esperava com o Lexus ligado. Qualquer pessoa se perguntaria o que garotos da elite estariam fazendo na Zona Sul roubando uma loja de bebidas em meio à madrugada; emoção, tédio, malevolência.

O garoto se virou ao ouvir um estalo logo atrás dele. Flagrou o beco vazio, mas logo uma silhueta esquelética surgiu como se atraísse o calor da fumaça que vinha do bueiro. Ela se aproximou vagarosamente, não querendo desafiar o garoto de porte atlético.

— Por favor, por favor… eu só quero um pouco, Q, por favor — implorou a silhueta, revelando-se na luz. Dom encarou enojado a pele calejada e deformada da mulher que mal conseguia se manter em pé.

— Malditos sequelas! — exclamou. — Eu não vou te dar porra nenhuma, é melhor você vazar.

— Por favor… você não sabe quem eu sou, eu posso te pagar, eu juro — ela insistiu.

Dom se virou completamente em direção à mulher e avançou com um movimento violento. Ele esticou a mão tentando agarrá-la, mas ela se esquivou, agarrou o braço do garoto e girou pendurando-se sobre suas costas. Em seguida, mordeu fundo o pescoço dele, fundo o bastante para triturar a pele com os dentes corroídos e romper a artéria.

O corpo caiu contra o chão e, enquanto sentia a vida o abandonar, o garoto encarou a mulher. Os ossos agredidos pelo tempo haviam se moldado monstruosamente, os olhos eram como um convite obscuro e penoso, mas nada se destacava como a cicatriz que se abria sob os olhos se estendendo até o queixo: era a marca de um passado que ela jamais esperava compreender naquela cidade tóxica e caótica.


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