Abril 26, 2021

reminiscência


contos | 10 min de leitura 📖

Esse é um breve conto, criado para e publicado pela editora Cavalo Café na antologia Insólitos. Reminiscência tem uma narrativa forte e punitiva, não escondendo com beleza aspectos cruéis da realidade, porém, também busca trabalhar a fantasia como gatilho das percepções históricas. Um conto breve e, espero que, prazeroso.

Um agradecimento especial para toda a galera que deu like no tweet e tornou essa publicação realidade e também as Apoiadoras. <3

Sugestão para acompanhar a leitura:



Reminiscência

“Ela estava presa, com as garras da Onça cruel rasgando sua pele e manchando o seu manto branco de vermelho escarlate. Do chão, as tribos em pânico entoavam canções tentando animar sua deusa que perecia diante do poder do inimigo, eles não acreditavam quando viam o brilho agora todo vermelho no céu, como se sangrasse sobre a Terra.”

As palavras da velha não eram para assustar, mas enriquecer a criança com fragmentos daquilo que fazia sua cultura forte, suas histórias e origem. A menina se revirava com a cabeça sobre o colo da anciã, que não perdia o fôlego. A noite estava agitada, o vento vindo do litoral prometia uma tempestade. As luzes das fogueiras fora da oca atravessavam pelas frestas da madeira e ilustravam a narrativa com formas abstratas.

— Yasy gritava, tão alto que o próprio mar se enfurecia tentando desgrudar da Terra para ir ampará-la, mas era em vão, pois ele tinha uma dívida e não podia apenas nos abandonar. Foram horas de agonia, até que um raio de esperança se ergueu no horizonte.

— Ele trazia calor, vovó? — A velha encarou a criança com um sorriso estampado de orelha a orelha.

— Ela trazia, sim, o calor e sua bravura. A Onça sentiu o coração na garganta e tremeu quando o rugido de Kûarasy acalmou o mar e os humanos, e assim que deu as caras, a criatura se debateu cega do brilho do Sol e caiu do céu, foi engolida pelo mar e desapareceu para sempre.

— Mas e a Lua vovó?

A velha limpou a garganta sutilmente.

Sob as garras, a luz se desfez,
Temente, mas sem perecer,
Em seu âmago a faísca se fez,
Encharcada por si.

O véu de uma cor, como cascatas,
E entre as tribos o temor,
De vermelho cobria as matas.

O horizonte rugiu,
Um feixe surgiu,
Com poder o Sol emergiu,
E brandou, a criatura puniu,
E a Lua que chorava riu,
De seu amor, nem dor sentiu,
Apenas renasceu.

O véu de uma cor, como cascatas,
E entre as tribos o fervor,
Da vitória cobria as matas.

A voz da velha preenchia a história e a imaginação da criança, ela piscava com os olhos pesados, mas ao mesmo tempo lutava para se manter acordada e acompanhar a história, se recordava de seus pais que, ainda em vida, tiravam horas da sua noite para cantar e aproveitar a presença que ainda tinha da sua avó como conforto para o vazio que permanecia em seus corações tão jovens. A velha abraçou a pequena em seus braços com lágrimas escorrendo sobre suas bochechas, se recordava de momentos semelhantes com seu único e precioso filho, em tempos de paz, tempos mais simples. Sentiu o calor do corpo de sua neta contra seu peito e aquilo lhe fez pensar em tudo o que havia perdido, mas assim como a Lua, ali tinha sua segunda chance, pois isso era o amor, ela entendia bem disso. Quando a criança pegou no sono, a velha apenas permaneceu ali, sentada ao seu lado, ouvindo o estalar da fogueira e o assobio do vento ao passar pelos vãos das construções do pequeno vilarejo. Ela flagrou fagulhas da luz do luar escapando pelo telhado amarrado e suspirou ao imaginar que toda aquela beleza estrelada logo estaria oculta sobre as nuvens carregadas.

Do lado de fora, sons de movimentos lhe despertaram a curiosidade. Sorrateira ela se afastou da neta e caminhou até a porta, espiou e não viu nada além de ocas fechadas, das fogueiras agitadas, um ou outro guerreiro e a escuridão, mas foi de um estalo incomum que lhe causou um calafrio sinistro na espinha.

Ela saiu pela porta e contornou com passos leves a parede da oca, ouviu novamente o estalo, agora mais perto e mesmo com o olhar cansado, mas com anos de vida no meio da floresta, ela flagrou o brilho tímido e mortal de um rifle.

Seu coração disparou.

Rapidamente voltou para dentro da oca, se envolveu em uma manta e acordou sua neta.

— Jaci! Jaci! — sussurrou.

— Vovó?

Logo ela ouviu os passos se dispersando em todas as direções. Uma agitação aos poucos tomava conta das instalações vizinhas. Notou pés se arrastando ao lado da sua parede, puxou rapidamente o cobertor sobre a criança.

— Silêncio.

Se afastou e colou o corpo ao lado da porta.

A madeira rangeu ao ser empurrada. Na escuridão, a velha arrancou uma arma afiada da manta, uma silhueta adentrou e foi surpreendida com um golpe ágil na jugular e empurrada para o canto à espera da morte.

— Jaci! — disse a velha, se aproximando da criança. Ela abraçou a menina o mais forte que pôde, já ouvindo o conflito tomando conta do vilarejo.

— Vovó! — exclamou a menina ao ver uma explosão vermelha tomar conta do teto da oca, foi um breve segundo para que tudo estivesse em chamas.

— Preste atenção! Você precisa fugir, está bem? Entre na mata, vá até o riacho e avise os outros. Por favor, Jaci, não olhe para trás, apenas chegue ao riacho e diga que os estrangeiros invadiram nossas terras. — A menina a encarou horrorizada, nova demais para compreender a gravidade do que acontecia, mas com idade suficiente para saber que se tratava de vida ou morte.

— Jaci! — insistiu a velha. — Kûarasy vai te proteger. Chegue ao riacho, não pare por nada!

A menina se levantou, a avó cobriu seu corpo com um tecido escuro, o suficiente para lhe aquecer e camuflar na mata. Ela abraçou outra vez a menina e foi até a porta. Espiou. Do lado de fora o caos era dominante, os nativos enfrentavam os forasteiros em um combate ferrenho e sangrento. Com toda a dor que jamais imaginou que sentiria outra vez, ela pegou a menina pelas mãos e correu, desviando das lutas corpo-a-corpo, pedidos de socorro e gritos de horror.

Passou ágil pelas fogueiras no centro do vilarejo, contornou algumas ocas se ocultando nas sombras e evitando dar as caras onde havia luz, sem sequer alcançar o limite das instalações, uma explosão contra suas costas a derrubou brutalmente. A criança caiu ao seu lado. O soldado avançou sobre ela, ergueu o rifle segurando em sua ponta para usar como bastão, mas antes de desferir o golpe, uma lança atravessou sua garganta.

A menina encarou sua avó. Com toda a fragilidade que lhe restava, a velha soltou sua mão.

— Vá!

A menina se levantou e correu, passou pelas últimas instalações se esforçando para não olhar para trás, entrou na mata ofegante, mas antes de sumir completamente, algo a agarrou no calcanhar. Ela bateu contra o chão, se virou aos gritos, um homem a segurava, mesmo se debatendo, lhe faltavam forças para se livrar. O homem então se ajoelhou, ainda a segurando, ela fitou a silhueta demoníaca e o fogo consumindo o seu lar e tomando a vida de seu povo, o inimigo puxou uma lâmina longa da cintura e sem hesitar, tomou a vida alheia, aos berros com nada mais do que insanidade no olhar.

Satisfeito com seu feito. Ele se levantou cambaleando e se afastou, voltando para o massacre.

A consciência de Jaci aos poucos a abandonava, naquele momento, o seu mundo parou. Não ouvia os gritos de terror, não sentia o cheiro das madeiras e corpos queimados, não sentia o frio e nem a dor dos ferimentos em seu corpo, apenas a voz de seus pais e sua avó unidos em um único tom doce. E com o que lhe restava de forças, ela entoava uma canção aos sussurros.

Como o vento que canta,
Quando passa e levanta,
Folhas e flores ao amanhecer,
Mesmo que haja neve, chuva ou areia.

Da montanha ele desce,
Ao seu belo nascer,
Trazendo não só a luz,
Mas calor para aquecer.

Sol, o Sol, da montanha ele desce,
Trazendo o brilho para a mata crescer,
Pois há vida, muita vida,
Mais vida para aquecer...

Do meio da escuridão, um brilho refletiu nos olhos da menina, se tornando cada vez maior e intenso. Lentamente a luz tomava forma, crescia como um humanóide, sobre duas pernas, com dois braços, uma cabeça, possuía garras que saíam das pontas dos dedos, chifres longos que enfeitavam a cabeça, a pele cintilava tons desconhecidos e marcas de guerra estavam pintadas com barro por todo seu corpo e sua face. A criatura se aproximou, deixando um rastro de luz por onde pisava. Parou ao lado da criança quase desfalecida em seu último sopro de vida e se abaixou.

— Você se lembra de mim — disse a criatura.

— Sinto seu calor — respondeu Jaci.

— Mas mesmo agora, você ainda lembra de mim! — A criatura exibiu um sorriso largo, fitou tudo ao seu redor e levou a mão sobre a face da menina, afastando os cabelos que lhe cobriam os olhos encharcados com sangue. — Jaci, como minha Yasy. A besta também rasgou sua pele, meu amor.

A criatura se deitou ao lado da menina, enquanto a observava, chorava e tentava encontrar palavras para o que sentia e queria compartilhar.

— Parece que é um castigo. Comigo, com meu povo — disse a criatura. — Me ajude a entender o que há de tão ruim além mar que corrompe nossa terra.

— Talvez apenas seja… como deve ser.

— Não deveria ser assim. — O ser rebateu.

— Faça ser diferente, então.

Kûarasy se levantou, segurando a criança em seus braços. Um brilho majestoso cobriu os dois.

— Façamos diferente, então.

O feixe de luz intenso aos poucos diminuiu e o reflexo nos olhos da criança se tornou um ponto se esvaindo até sumir. A menina se ergueu exalando uma aura intensa de seu corpo, seus olhos brilhavam como a lua cheia, seus primeiros passos foram pesados, a mata se abria em seu caminho. Conforme avançava pelo vilarejo, onde havia fogo, ele se apagava, onde haviam corpos caídos, eles se erguiam, onde estava molhado de sangue, secava, tudo voltava ao seu lugar, assim como os invasores recuavam de volta para a costa. Até que ela parou no meio da mata, no meio da escuridão.

Do corpo da menina, espectros monstruosos surgiram compartilhando seus sentimentos, eram formados por criaturas meio felinas, com chifres e presas brilhantes. O solo ocultou mais do que raízes, assim como as árvores que camuflavam olhares ardentes e defensores. Ali estavam as testemunhas de Kûarasy, certos de que nada mais iria ameaçar seu povo.

O grupo de forasteiros armados avançou sorrateiro pela mata.

Sem perceberem, silenciosamente um a um começou a desaparecer.

Um deles se afastou da maioria, se sentindo ofegante com a neblina que descia na floresta.

Ele encostou em um tronco, uma sombra surgiu sobre suas costas e o partiu em pedaços antes mesmo que se desse conta de que não estava sozinho. Outro sentiu o pé afundar em algo que parecia uma poça, logo foi puxado para as profundezas da terra. E das sombras, a criança observava, seus espectros se espalharam e destruíram tudo aquilo que um dia poderia lhe trazer dor.

Assim, o grupo de forasteiros armados, desapareceu pela floresta.

O véu de uma cor, como cascatas,
E entre as tribos o fervor,
Da vitória cobria as matas.

A voz da velha preenchia a história e a imaginação da criança. A menina se aninhou nos braços da avó, que respondeu ao gesto amoroso.

— Kûarasy nos protege, vovó.


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