Janeiro 29, 2021

redescobrindo os herdeiros de mour #1


webserie | 25 min de leitura 📖

Há alguns anos, quando habituado a escrever no blog, eu costumava escrever histórias dividas em capítulos periódicos – claro que sempre acontecia de ter uma ou duas semanas de atraso, mas vamos imaginar que era regular rs -, as chamadas webseries. Quando meu blog ainda se chamava Um Gole de Utopia, eu iniciei a história As Cinzas da Fênix, que viria a tratar de três personagens que em um dado momento se cruzariam para mudar um universo fantástico. Foi uma experiência irada, ao todo 11 capítulos, muita visualizações e acabou por se tornar a premissa de uma ideia mais ambiciosa. Claro que a rotina e vida adulta acabam oprimindo os sonhos e a criatividade, mas também se trata de disciplina e exercício, não é?

Os Herdeiros da Terra de Mour, mudando de pano para manga, foi minha primeira publicação – ao mesmo tempo excitante, decepcionante, mas acima de tudo, necessária -, uma história jovem e com potencial. Felizmente consegui me livrar das amarras com os contratos editoriais. Agora, unindo a necessidade de escrever e criar, de autodisciplina e buscando encontrar neste diário digital uma terapia para as loucuras da vida, decidi por retomar as webseries reescrevendo a Terra de Mour e, com muita esperança e dedicação, quem sabe finalizar todas essas histórias de uma vez.

Este post é um olá, uma apresentação e um breve desabafo. Não vou prometer que todo dia x vai ter postagem, sabem como é. Mas prometo me esforçar para dar continuidade, sempre com metas iniciais ambiciosas, para deixar tudo mais caloroso. Espero que tu me acompanhe nessa jornada, pois vai ter muita aventura e fantasia, isso eu garanto, e nos próximos posts, teremos um pouco mais de chat chat, por ora, larguemos a conversa fiada para finalmente mergulhar nas imaginação.


Capítulo I | Mundo Sem Cores

Com esforço, me virei quando tudo escureceu. A solidão dentro do vazio era aconchegante antes de se tornar fria e histérica. Logo, camadas disformes se estenderam pelo espaço revelando e ocultando as estrelas como véus coloridos, cintilantes, rasgados pela própria sorte e jogados aos sopros das deusas que trazem o vento. Sobre suas cores entorpecentes e vibrantes, alguns relâmpagos surgiam em clarões que riscavam o mais profundo do obscuro, marcando obras primas abstratas, um vislumbre ad infinitum.

Por entre as estrelas, o pó dourado marcava passos largos de algo que não se deve ver, ao mesmo tempo que um zumbido indistinguível ecoava pelo todo, como sons de algo que não se deve ouvir.

Meu coração apertou de repente no que parecia ser meu corpo, enquanto eu o observava de fora. Me surpreendi com algo que eu já esperava, mantendo em mim um peculiar sentimento agridoce. E quando tudo parecia se acalmar, fragmentos de lembranças não tão distantes, que raros me pertenciam, insistiam em perturbar a ansiedade que aos poucos crescia na minha mente. Um universo disforme.

Logo, um clarão seguido do vazio.

Então acordei.

— Bernardo! Vai perder a aula se não levantar de uma vez!

O garoto despertou com os olhos pesados, se esforçando para curtirem a luz do dia. A voz da mãe de Bernardo escapou da cozinha ecoando e se escorando contra as paredes, truculento, percorrendo os cômodos até o quarto e o alcançando como um apelo caloroso. Ele apertou o peito das mãos contra os olhos enquanto se recuperava de outro pesadelo turbulento, causado pelas noites mal dormidas.

Meus planos de vadiagem foram pelo ralo.

— Tô indo! — exclamou ao sentar na cama. A voz saiu rouca, falha, mas ele acreditou ter sido suficiente. Se arrastou até o outro lado, se esticou e alcançou a janela, puxou a cortina como se pesasse mil vezes o que realmente pesava, era um algodão simples e escuro, fazia bem ao esconder o sol de fim de tarde que imediatamente invadiu todo o quarto, exibindo seus últimos raios e o fraco calor.

Bernardo bocejou, sentiu um mal estar em todo o corpo, o intestino parecia se embrulhar enquanto uma dor leve e familiar se instalava em algum lugar irreconhecível da sua cabeça. Ele atravessou o quarto até uma pilha de roupas, haviam várias jogadas sobre  a cadeira que descansava em frente à sua escrivaninha. Ele olhou a bagunça sobre o teclado, os papéis sobrepostos e todo seu material de desenho espalhado para lá e para cá, sentia que ela havia se tornado a sua melhor amiga, a escrivaninha. 

Por um momento, lhe veio a nostalgia. Então desdenhou. 

Puxou o jeans e em seguida uma camisa flanela, deixou parte da pilha caída e não se preocupou, se sentia confortável com o estilo de sempre, ou a falta dele. A bota estava no caminho, sem cadarços, apenas esperando para ser vestida. Ele olhou ao redor tentando não esquecer nada dessa vez, sentiu levemente uma estranha exaustão e apertou a alça da mochila que segurava. Ele sabia distinguir as coisas, mas por algum motivo ainda não estava confiante de que o pesadelo havia acabado, se sentia em um estado inerte, em um limbo, mas depois dos últimos meses sendo atormentado por essa ansiedade que não demorou por se tornar familiar, ele sabia quando estava sonhando acordado ou consciente em seus sonhos. Abandonou os devaneios, agarrou o notebook e enfiou dentro da mochila. Saiu tropeçando do quarto e no banheiro logo se arrependeu de se encarar no espelho.

Você está um lixo.

Bolsões roxos tomavam forma sob seus olhos escuros e profundos, a insônia o estava consumindo, noites a fio tentando fugir da crowd de pensamentos e dos breves lapsos intensos  e melancólicos, ao menos lhe rendiam tempo para fazer o que mais amava, pinturas esquisitas, textos sobre universos que nunca existiram e muitas partidas de jogos online. Por outro lado, dormir errado, comer errado… Estava acabando com o seu corpo e sua mente.

Jogou as grossas tranças que lhe escorriam sobre os olhos para trás, o cabelo quase alcançava os ombros. Pronto para começar seu dia, caminhou pelo corredor que se distribuía em alguns quartos antes de chegar à escadaria. As paredes descascadas da tinta velha traziam um pouco de conforto sempre que Bernardo voltava a reparar nelas, pequenas lembranças da infância, de dias despreocupados, de seu pai. De cima da escada, flagrou sua mãe em um vai e volta frenético entre a cozinha e a sala de estar. 

Meio sorriso lhe veio ao rosto.

Desceu furtivo e espiou a porta da sala, notou então que os sofás estavam diferentes. O chão de madeira escura era levemente marcado pela inconstância da organização da casa, já acostumada às mudanças. Ao contrário do que era costume, o sofá estava de lado para a televisão, próxima a estante de livros. A janela aberta estava coberta por novos jogos de cortinas finas e a mesa de centro estava decorada e quase pronta para um banquete humilde, com salgados e jarros de bebida. Bernardo escorou no canto da porta e coçou a cabeça, curioso.

Entrou na cozinha com um olhar apertado, sua mãe passou por ele agitada.

— Coma alguma coisa! Você já devia ter saído! Precisa… — Ela ia dizendo enquanto caminhava para a sala com uma bandeja de biscoitos.

— O que está acontecendo? — perguntou de longe.

— Terei algumas visitas hoje! Não notou? — Sarcasmo sempre foi seu forte e ele adorava isso.

— É? E quem seriam?

— Algumas amigas estão vindo aqui, vamos comer algumas porcarias, falar mal dos vizinhos e claro, nossa primeira reunião do clube.

— Clube? Mãe! Você insiste nisso?

— Ê! — Ela exclamou se aproximando e o abraçando pelas costas. — Você vive me enchendo o saco e dizendo que devo fazer alguma atividade.

— Sim, mas…

Ela contraiu as sobrancelhas exibindo uma carranca. Ele sorriu e ela o acompanhou. Aquilo era um acordo, ao menos do jeito deles, era um acordo.

Ainda assim, Bernardo não disfarçou ao torcer a boca enquanto ela contava sobre os tópicos da noite. Ele a seguia com o olhar, encantado como sempre pelo jeito meigo de ver graça nas bobeiras jovens, sendo incansavelmente espirituosa, do tipo que mesmo depois dos cinquenta e tantos, se gabava pelas pequenas conquistas. 

Uma surra no mundo”, como ela dizia. 

Por um momento, o garoto entendeu o quão difícil era entender e falar sobre mães, pois além do respeito, ele sempre sentiu o peso do que devia à ela, e por mais que tentasse discordar, ela tinha o péssimo hábito de estar sempre certa. Ele se mordia por isso.

Uma guerreira.

Não era novidade ver ela animada com companhias, levou a vida sempre ativa, trabalhando dia e noite, se esforçando para superar os desafios que a vida lhe impunha.

— E o Jorge. Faz parte do clube também? — Ele perguntou em um tom provocativo. Ela arqueou uma sobrancelha e mudou de assunto.

Bernardo já havia conhecido alguns dos diferentes namorados que sua mãe teve ao longo dos anos, ela se esforçou, mas parecia que não conseguia se desvencilhar de seu pai, por mais que ele não estivesse por perto há longos anos. Vez ou outra, ele ouvia sua mãe fazendo comparações ao telefone com algum amigo ou amiga. De qualquer maneira, sempre manteve sua independência e era osso duro de roer.

Com duas maçãs na mão, Bernardo achou que seria suficiente pelo resto da noite e se aprontou para sair. Antes de chegar à porta, flagrou sua mãe finalizando a organização da sala, olhou como as cortinas se agitavam com o vento que passava pelos vãos da janela entreaberta. Em dias claros como aquele, em alguns pontos da casa, o sol passava sorrateiro pelas extremidades das janelas, driblando as cortinas longas. Os feixes iluminavam vários cômodos sem esforço, mas para Bernardo, o auge da presença do sol era quando ele se combinava com momentos de leitura ou distração da sua mãe no sofá. O amarelo contrastava na pele e o brilho dava ainda mais vida para o negro dos cabelos bem cuidados. Ela era linda e exibia muita energia. Seus olhos grandes, amendoados e com um tom terroso brilhavam o tempo todo, costumava usar o cabelo longo sempre preso em um coque propositalmente desarrumado, ele ficava jogado para trás com as ondas dos cachos como se fosse uma cascata abraçando a si mesma, enquanto pequenas mechas que fugiam acabavam por escorregar sobre a testa e as orelhas. Ele a observou por mais um breve momento, até que ela chamou sua atenção novamente.

Deixando o seu maior tesouro para trás, ao chegar na calçada seus dedos já buscavam a playlist favorita no celular. Com o fone nos ouvidos, se deixou mergulhar em um dos seus momentos favoritos. Ele apreciava a solidão, mas não a solidão absoluta, e sim aquela em que ele podia se encontrar consigo mesmo. As primeiras notas o animavam e logo a intensidade lhe permitia levar sua mente em viagens para outros universos, enquanto o mundo a sua volta parecia simplesmente parar. Ele estava, sem sequer notar, adicionando uma trilha sonora à sua vida. 

Com o som alto, caminhou duas quadras até o ponto de ônibus em meio ao tumulto do horário de pico. Tinha algo de especial nesses pontos, talvez fosse a arte marginalizada, os lambe lambes que atropelavam uns aos outros e cartazes indie do tipo “feito no powerpoint, impresso em preto e branco, é mais barato, obrigado”, mas cumpriam a função e sempre traziam algo interessante, seja uma poesia dantesca punk, um anúncio de turmas das faculdades da região ou algo como “procura-se este cachorro”. Sim, Belona era uma cidade especialmente comum.

Na faculdade, Bernardo se apressou passando pelo portão principal, cumprimentou uma galera que conversava e fumava enquanto esperavam o horário da aula. Desceu um enorme corredor aberto até chegar ao primeiro pavilhão do campus, já não estava atrasado, mas queria fazer um desvio antes de ir para a sua sala. Deu de cara com um prédio azul e comprido, na fachada havia uma placa desgastada e consumida pelo tempo, “Arquitetura e Engenharias”, estava escrito nela. Ao lado, uma porta mais discreta, com uma placa ainda mais discreta e dizendo apenas: “Biblioteca”.

Bernardo estava com algumas ideias há algum tempo rolando na sua cabeça, ele costumava fazer isso, planos mirabolantes. Ele era apaixonado pela mitologia grega e já havia iniciado a disciplina de estudos das culturas politeístas, pela primeira vez sentia alguma familiaridade com a vida universitária e estava feliz pela oportunidade de provar para todos e para si mesmo que ele manjava de alguma coisa.

Afinal, quem não quer ser bom em algo?

Ele buscava inspirações e já tinha um livro na ponta da língua. Buscou nos corredores errados por alguns minutos, até que seus dedos encontraram um livro grosso e de tons escuros, na lombada estava escrito: “História Mitológica Greco-Romana”. Seus olhos brilharam, o puxou e abriu de imediato, leu algumas breves linhas lidas já se sentindo inundado pela inveja e o desejo de ter poderes como os heróis épicos, realizar feitos grandiosos, enfrentar criaturas monstruosas, deixar seu nome na história ou qualquer outra coisa que trouxesse o mínimo de emoção para a sua vida pacata e exaustivamente comum. E claro, fomentando ainda mais ideias para suas próximas noites de insônia produtiva.

Ele seguiu para o balcão com mais três livros que pegou pelo caminho. A atendente o encarou de longe, conforme ele se aproximava do balcão, e um sorriso gentil se abria no rosto da garota. Bernardo flagrou que do leve decote vincado dela, se erguiam linhas abstratas que se cruzavam incontáveis vezes compondo uma tatuagem ornamentada toda em preto. Algumas dessas linhas se estendiam até os ombros e jogavam pequenos adornos para o pescoço, claramente uma obra de arte e muitas horas de dor.

— Espero que seja curiosidade — declarou ela se desfazendo do sorriso. Bernardo se desligou por um momento, tentando não voltar os olhos para a tatuagem com receio de parecer desrespeitoso.

— É, é uma tatuagem incrível. — Ele tentou desesperadamente aliviar a tensão.

— Uhm — respondeu ela e não disse mais nada. Ele entregou os livros e os recebeu de volta após serem registrados no sistema. Saiu da biblioteca com uma sensação esquisita, quase escondendo a cara entre as páginas e foi direto para a sua aula. 

O curso de História parece uma eternidade depois de algum tempo, leituras torrenciais e um ritmo pouco frenético, uma queda em um abismo de três anos em temas incríveis, mas com um formato ultrapassado e tedioso. Incontáveis foram as vezes em que Bernardo se sentia tão deslocado na academia, como em quase todo o resto da sua vida.

Fora da casinha.

Na sala, meia dúzia de gatos pingados já ocupavam lugares que faltavam levar seus nomes. O professor entrou deixando um rastro quase asfixiante de cheiro de cigarro. O velho senhor de nome complicado tinha cabelos escuros, lisos e curtos, sua aparência era intimidante e séria, possuía o corpo avantajado, ombros largos. Vestia um suéter grosso e como de costume, trazia uma pasta de couro marrom, surrado do tempo, sob seu ombro. Ele largou tudo sobre a mesa e impondo sua postura, típica de professores que se acham deuses em instituições públicas, começou:

— Boa noite pessoal, hoje… — Ao menos tentou começar. As palavras mal saíram da sua boca quando o restante da turma resolveu entrar. Eufóricos, tomavam a atenção de todos, as vozes altas se transformavam rapidamente em murmurinhos irritantes e desrespeitosos, não que a aula fosse um deleite, mas Bernardo estava minimamente interessado, afinal, esperou por aquele tema durante semanas. Ele observava do canto da sala, na última fileira, última carteira, como era de seu feitio, gostava  de pensar que mesmo sem usar palavras, os outros o entenderiam, como se houvesse uma placa sobre sua cabeça: “não perturbe”. Ele gostava de estar quieto e no próprio canto, sentia-se aliviado por ter sobrevivido ao ensino médio e não sentia falta da bagunça de carteiras velhas e verdes, com tampos pichados e forro de chicletes colado no lado de baixo. Os recém chegados se aglomeraram nas carteiras do centro, quase que como em uma disputa para ver quem senta primeiro.

— Como eu ia dizendo, hoje retomamos os clássicos da mitologia grega — continuou o professor lançando um olhar ferrenho sobre a classe. — E também aproveitaremos o gancho da exposição dos mitos que temos no museu da faculdade durante esta semana. Imagino que este seja um assunto de muita curiosidade — deu uma pausa e fitou alguns dos alunos em particular. — Pelo menos para alguns de vocês, pensar em grandes heróis, criaturas... 

Ele caminhou de um lado para o outro pressionando o polegar sobre o peito da outra mão, então se encostou contra a lousa.

— Acredito que vocês já tenham acompanhado todo o material que enviei na semana passada, portanto pensei em começarmos por dois grandes rivais, mais do que típico nas aventuras mitológicas, o bem contra o mal, certo? É até difícil escolher com tantas referências de narrativas, que tal Teseu e o Minotauro? Perseu e a Medusa? Ou Belerofonte e a Quimera? — Deu uma breve pausa.

O velho professor parecia empolgado, ele discursava gesticulando constantemente, talvez tentando chamar a atenção da turma ou simplesmente por se tratar de algo que o animava.

— Sinceramente, esse último é o meu favorito — continuou quando finalmente parou e esfregou a mão sobre a barba rala. — Existem muitos monstros na mitologia grega, mas poucos tão complexos. Vejam! A Quimera era um monstro! — Ele se voltou para a lousa e começou a descrever a etimologia da palavra. — Mas também representa uma linguagem popular. Vamos dizer que figurativamente, ela é a representação de uma mistura errada, algo que não deveria se unir e se une, e também remete a utopia, no sentido de impossível. Conseguem imaginar? Por si só ela é uma fantasia, digo, uma forma de explicar a fantasia e vice-versa. Acredito que muitos conheçam essas histórias de filmes ou livros. Alguém poderia me dizer algo sobre o encontro de algum desses gigantes?

A classe manteve um silêncio mórbido. Todos se entreolharam. Bernardo tinha a resposta na ponta da língua, mas não era do tipo que gostava de falar em público, além de parecer estar bem entretido com o Nintendo escondido sob a mesa. Ao mesmo tempo, ele pensava consigo o quão descrente se sentia ao notar que depois de meses estudando a economia e sociedade grega, ninguém parecia ter dado sequer uma espiada nas referências sobre mitologia.

Até que uma voz se ergueu.

— Sobre Perseu eu não sei, professor, mas o Kratos usou os próprios punhos para matar a Medusa! — Todos riram, os nerds se encararam com desdém, mas tentando esconder um sorriso frouxo. O velho professor fitou Tomas com um olhar curioso, sabendo que ele estava se referindo a outra coisa que não um filme e nem um livro, mas ao mesmo tempo já o repreendendo por conhecer o garoto como o palhaço da turma.

— Por favor! — exclamou levando a mão sobre a cabeça. —  Alguém?

— Perseu era um semideus ambicioso e poderoso, filho de Zeus e Dânae. — Disse Eliza em alto e bom tom. Bernardo sentiu um calafrio subir de imediato pela sua espinha seguido de um desconforto no peito, mesmo sem tirar os olhos do videogame, ele sabia não confundiria aquela voz. — Ele confrontou e decapitou a Medusa, o que inclusive não passa de outra história estúpida de opressão sexual.

— Como? — disse o professor desconcertado.

— Ah, desculpe. Ele teve ajuda de Hermes, Hades e Atena, que lhe entregaram a vitória de bandeja quando lhe deram um escudo que refletia, um elmo que o tornava invisível e umas sandalhinhas aladas, senão ele teria sido massacrado, não que não merecesse.

A garota finalizou desviando o olhar para o livro aberto em sua mesa, enquanto todos a observavam rindo de canto. Eliza tinha o costume de usar palavras curtas e grossas, não à toa Bernardo a admirava. Ele, por sua vez, se rendeu a curiosidade e espiou entre as cabeças à sua frente, encarou Eliza com um olhar amigável, mas ela não notou. Ele não se importava, carregava consigo uma paixonite secreta, algo que havia sido plantado no primeiro semestre, quando a conheceu em uma roda de conversas com o seu irmão, Tomas. Eliza era astuta, hábil em diversas disciplinas e com muitos dons, como música, pintura e também esportes, por vezes Bernardo desconfiava que se existisse magia no mundo, ela certamente trapaceava na vida, “não é possível que alguém mande bem em tantas coisas” ele costumava pensar. Enquanto a fitava, notou que Tomas o observava com o olhar apertado, para o irmão, a paixão de Bernardo não era segredo, talvez naquela altura, ao longo de tantos semestres, não fosse segredo para mais ninguém. Ao contrário de Elizabeth, o irmão, Tom, como lhe chamavam, não tinha tantos talentos, era grande e forte, um brutamontes, não muito inteligente, mas esperto e com uma lábia convincente, e apesar de intimidante, era uma boa pessoa, conversava com todos os grupos por mais diferentes que fossem e até mesmo com Bernardo.

— Resposta ótima senhorita, só podia ter se esforçado mais, não acha? — Retrucou o professor rispidamente. — A história deles e outros estava na leitura de referências — ele encarou a sala com tom arrogante. — E não se trata da opressão essa nossa aula, até prefiro não trazer política como tópico de discussão, é a poesia por trás do duelo que estamos buscando, para compreender e estudar.

Eliza imediatamente lhe lançou um olhar de reprovação, quanto mais ele falava, Bernardo se consolava com a aversão que só crescia pelo professor.

— Como toda a porcaria de herói branco e prepotente! — pensou o garoto em voz alta, e só se deu conta que foi alta demais, quando murmurinhos e olhares se voltaram para ele.

— Vocês estão achando que é brincadeira, não é? — questionou o professor agora com a voz grossa e maquinada.

Sem medir as palavras, Bernardo ergueu a cabeça.

— Brincadeira é pensar só na poesia por trás da cultura quando há tantas mensagens desesperadoras da verdade nas entrelinhas, é claro que quando falamos de história também reflete a política, assim como a cultura.

— E o que você sabe da história? — O velho professor lhe lançou um olhar cerrado.

— Perseu não entrou na porrada com a Medusa por ela ser uma vilã, era para satisfazer o seu ego enorme e ridículo! — exclamou Bernardo quase perdendo o fôlego na sentença. Satisfeito com a afronta e o desabafo, ele ignorou todos presentes e voltou a atenção para o videogame, mas não antes de perceber um sorriso amigável na feição de Eliza.

— Essa geração de vocês é mesquinha e perturbada. Ficam tentando achar cabelos em ovos, trata-se de um romance, como a bíblia e…

O velho professor tentou, mas já havia perdido o ritmo e a razão. Enquanto ele continuava seu discurso arcaico e defasado, Bernardo tentava abstrair a mente e digerir a impaciência que vinha lhe servindo de desculpas desde que os pesadelos começaram.

A aula havia acabado, os alunos deixavam a sala a passos largos, se espalhando pelos corredores como um ninho de formigueiro após um temporal. Bernardo sentia-se incomodado pela fome, havia devorado as maçãs durante as aulas, estava ansioso, próximo do intervalo mal conseguia dar atenção ao Nintendo e descontou nas frutas. Ainda restava uma aula, mas ele não se sentia nem um pouco disposto a permanecer.

Enquanto caminhava para o refeitório, levou a mão de forma desajeitada até o bolso de trás da mochila, parecia estar coçando as costas, mas buscava por alguns trocados para comprar qualquer coisa que não o deixasse morrer de fome. Um rapaz alto se aproximou, vinha acompanhado de outro grupo, mas ao passar por Bernardo, saltou sobre ele e o abraçou caminhando lado a lado.

— Cara, o que foi aquilo? — questionou Marcos com um sorriso de orelha a orelha. Um dos poucos amigos de Bernardo.

— Aquilo o quê?

— Aquilo! De responder o velho Falkenbergules — disse fazendo graça do sobrenome difícil do professor. — Foi legal, mas idiotice. Sabe como são esses professores, a palavra deles é a palavra de Deus, você pode ganhar um belo zero esse semestre.

Bernardo encarou o amigo, fechou a cara em uma expressão estranha, Marcos respondeu curioso.

— Achei! — Bernardo puxou uma nota de dez.

Marcos deu uma gargalhada alta. Gostava de Bernardo por reconhecer as qualidades do amigo, principalmente sua perseverança e teimosia, não sabia ao certo para qual lado ele pendia mais, mas gostava. Ele soltou Bernardo por um momento, como de costume esfregou as mãos, enquanto contava de uma festa que estava empolgado para ir, escovou os cabelos tingidos de vermelho para trás com um pente que vivia em seu bolso.

— Sabe, só estou de saco cheio ultimamente.

— Eu te entendo, cara. Que tal nós dois sairmos aliviar a mente um pouco? Faz tempo que não fazemos algo, Bernardo, não sei como você aguenta!

—  O que você pensou?

— Estava agora te contando da festa das Engenharias, você não me ouviu?

Não, desculpe, mas não me interessa.

— E o que eu vou fazer em uma festa?

— Ahn… Se divertir!

— Eu me divirto, cara, preciso correr ou qualquer coisa assim… — disse Bernardo com um olhar apreensivo enquanto passava as mãos na barriga. — Ou comer, pelo amor de Deus!

— Você precisa de uma festa, urgente, meu amigo! — Marcos riu.

Chegando próximo à fila da lanchonete, flagraram um pequeno amontoado de pessoas, entre elas estavam Tom e Eliza. Bernardo já não estava se sentindo muito confortável e naquele momento parecia que o destino não ajudaria. Ele tentou desviar, mas Marcos o puxou direto para a fila.

— Hei! Meu amigo-sabe-tudo! — Tom se aproximou jogando o braço ao redor do pescoço de Bernardo, que pensou por um momento entender como um coelho se sentiria sendo presa de um leão. — Aquele professor é um mala. Não sei como você e a Eliza conseguem ficar se bicando com ele.

—  Se bicando? — Bernardo não entendeu a intenção de imediato, ficou se perguntando se havia se posto em outras situações de rixa com o professor no passado, de modo que nem chegava a perceber mais.

— Vocês vão à festa das Engenharias? — Marcos se alegrou como uma criança recebendo um presente novo ao ouvir a pergunta de Tomas, sabia que Bernardo não negaria, o motivo era óbvio, então fazendo uma aposta mental consigo mesmo, ele apenas aguardou.

— Não sei… Tem tantas coisas…

— Ele está dando desculpas outra vez? — Bernardo arregalou os olhos, tentou se afastar de Tom, desconcertado, mas a agitação do colega impediu. Elizabeth se aproximou e perguntou novamente. — Qual a desculpa agora?

Marcos deu uma cotovelada leve no amigo.

— Dane-se, vemos vocês lá!

— Ah! Valeu! Vamos juntar a galera, vocês podem vir com a gente.

— Agora? E a aula? — perguntou Bernardo.

Todos riram. Por um breve momento ele se sentiu idiota, mas não ligou, talvez realmente só precisasse de uma festa, sem ideias mirabolantes, pensamentos frenéticos, apenas uma bebida gelada e algumas porcarias para encher a barriga.

Apesar de não gostar muito da ideia de matar aulas, Bernardo deu uma chance. Sempre se esforçou para conseguir as coisas, e uma conquista que lhe deu muito trabalho foi entrar na faculdade. Ao contrário da maioria em sua classe, poucos, minoria assim como ele, frequentaram apenas escolas públicas, e para entrar em uma faculdade pública é preciso muito mais. Enquanto o grupo caminhava para o outro lado do campus em uma agitação sincronizada, Marcos vinha logo atrás com Bernardo, bombardeando o amigo com suas aventuras online. Ele gesticulava entusiasmado, como um bom nerd que sempre demonstrou ser, Marcos sempre amou se aventurar em longas jogatinas madrugada adentro e disso Bernardo também entendia, compartilhava da paixão por jogos com o amigo e principalmente a familiaridade com as noites em claro. 

Bernardo ouvia o amigo, pelo menos parecia ouvir, pois enquanto Marcos falava, o garoto apenas concordava e mantinha os olhares fixos no horizonte, mirando o céu e contemplando a noite estrelada. A temperatura naquele horário estava perfeita, era noite de verão, daquelas em que até o cheiro das grama fica mais intenso e os insetos parecem enlouquecer, mas como todos já estavam acostumado em Beladona, poderia esfriar repentinamente, era uma cidade de quatro estações, por assim dizer. 

Não demorou para chegarem em uma casa pequena cercada por pinheiros, ainda dentro do campus. Dela, várias pessoas entravam e saiam agitadas. Conforme o grupo se aproximava, podiam ouvir o barulho da música aumentando com batidas rápidas e sintetizadores distorcidos, lá era a festa e também o núcleo de estudantes de Arquitetura e Engenharias. Marcos empurrou o amigo sentindo a relutância dele. Logo estavam no meio da bagunça.

Tom sumiu e logo voltou com algumas garrafas de bebida nas mãos, distribuiu entre os amigos, Bernardo tentou se situar, haviam muitas pessoas lá, aglomeração já havia sido o auge das suas curtições, mas ele estava em um momento de tamanha abstração social, que se sentia mais deslocado o que poderia imaginar. A cozinha estava abarrotada, ela era ampla e aberta para os dois corredores da casa, do outro lado um pessoal se amontoava nos sofás enquanto outros em volta de uma mesa de pingue pongue. Bernardo se esquivou de algumas pessoas e foi até a cozinha, disfarçou largando a garrafa sobre a pia e encheu um copo azul de plástico com água, olhou em volta e saiu bebericando, sabia que álcool não seria uma boa ideia considerando as noites perturbadas que vinha tendo.

Antes de voltar com o seu grupo, ele foi abordado por um colega. O garoto aparentemente um pouco mais velho vestia um chapéu mexicano grande e extravagante, chegou abraçando Bernardo e equilibrando o copo como se fizesse malabarismos.

— Fiquei sabendo que você tirou o Alemão do sério! — exclamou Felipe após uma golada profunda.

— Ele soltou a língua! — Marcos afirmou. 

— Qual é…

— Fica tranquilo, Bernardo, a galera só está surpresa — disse o garoto agora quase derrubando o copo que tentava equilibrar junto ao corpo. Bernardo ignorou o bafo forte de álcool e desdenhou a discussão desviando o olhar.

— Não foi grande coisa, não foi.

— Claro, mas ninguém esperava — disse Marcos. 

Após alguns minutos de conversa fiada, Bernardo tentou se afastar, o barulho estava começando a incomodar e aquela velha dor de cabeça já dava seus primeiros sinais. Ele imaginou que fosse o som, talvez a luz que alternava entre clarões do estrobo que estava na outra sala, de qualquer forma, ele não estava confortável. Atravessou o corredor e antes de chegar de volta na cozinha, sentiu uma tontura leve, sua mente apagou por um momento, a sensação foi de uma piscada forte e longa, quando se deu conta estava no meio das pessoas que assistiam ao beerpong. Próximo dele, em um dos lados da mesa, estava Marcos eufórico e bêbado, gritava em comemoração ao pontuar no jogo, mas sem sequer ter noção e contagiado pela adrenalina, bebeu mesmo sem receber a punição. Bernardo esfregou os olhos com força até borrões claros aparecerem diante da escuridão da sua vista, sentiu a boca secar e um zumbido crescente em seus ouvidos, pareciam palavras soltas aos berros e potencializadas por um amplificador do tamanho de um prédio. Ele não se esforçou para entender o que havia acontecido, não conseguia, então se sentiu sufocado e não apenas no sentido figurativo, ele precisava de ar. Sem chamar a atenção por parecer comum qualquer atitude incomum naquela altura da festa, ele apenas saiu empurrando uma e outra pessoa até conseguir superar a muvuca e avançou para a porta.

Sua mão empurrou a porta já aberta a escancarando totalmente, sem se importar, ele apenas desceu os dois pequenos degraus e respirou fundo. Ventava fraco, mas gelado. O ar quase queimou ao preencher seu pulmão, mas funcionou e o suspiro seguinte foi de alívio. O zumbido aos poucos diminuía deixando seus ouvidos em paz, ele deu alguns passos para trás e se escorou sem cerimônias contra a parede próxima da porta.

— Parece que você está curtindo a festa! — Ele não percebeu que havia alguém perto, tão perto que quase ao seu lado, sequer reparou o cheiro do perfume doce levemente amadeirado pelo qual havia se apaixonado, por um momento, nem mesmo na voz que se repetia em sua mente quase todos os dias em que buscava inspirações. Se virou para o lado ainda um pouco perdido. Ali estava Eliza. Ele a fitou com cuidado, sentiu o estômago dando um nó. Ela soltou um meio sorriso. Postada ali, naquela noite vestia uma camisa branca um pouco solta, Bernardo gostava da combinação com a macacão jeans e o coturno amarelo, refletia muito do que ele conhecia da garota, imprevisível.

— Eu só precisava de um ar — respondeu respirando fundo outra vez.

— O que rolou hoje…

Bernardo percebeu que Elizabeth não sabia quais palavras usar para começar aquele assunto, então respondeu empaticamente.

— Não esquenta, a nossa geração e a dele nunca vão conseguir conversar abertamente. A maioria das vezes, pelo menos, não.

— É, talvez não. Meu pai tem quase a idade dele, sabe como é. Algumas coisas ele não engole, mas a mente é tão diferente, receptiva.

— É… só tenho minha mãe. — A garota franziu a testa, naquele momento percebeu que não conhecia realmente Bernardo e que nunca haviam tido um momento só entre eles. — Ela é cabeça dura, mas não julga, sabe, não aceita tudo, mas não discorda e tenta aprender mais antes de realmente criticar.

— Eu sei — disse ela com uma risada. — Minha mãe também é assim. Talvez seja apenas criação.

— Talvez.

— Você… está bem mesmo?

Bernardo encarou a garota e desviou o olhar para o nada, estranhou quando se deu conta que ainda estava com o copo na mão, então deu um gole e outro em seguida.

— Acho que só estou cansado.

— Nem me diga, não sei como essa galera vai aguentar essa noite, mas eu não sei se estou disposta.

— Se você quiser companhia, posso ir com você até uma parte do caminho, sabe, pra você não ir sozinha.

Ela sorriu, confirmando o que Bernardo esperava, ela não pretendia continuar na festa, mas também não queria ir embora sozinha, era uma boa desculpa para ele se despedir de todos e sair daquele momento conturbado.

A região do campus era perigosa, principalmente durante a noite, as duas quadras que faziam parte dos limites da faculdade eram cercadas por prédios comerciais, típico de área central, sendo assim, por mais que houvesse boa iluminação, ainda havia muita gente de má intenção que se aproveitava para assaltar os alunos que moravam na região e iam a pé pelas ruas vazias. 

— Acho que vou esperar mais uns vinte minutos, aí te encontro aqui, com sorte consigo tirar Tom daqui também — encarou Bernardo fechando a cara. — Mas não se atrase, senão eu vou assim mesmo!

— Sim, senhora! — exclamou o garoto com um sorriso de bobo. Ela retribuiu e entrou.

Bernardo sentiu um alívio esquisito, nunca havia trocado tantas palavras com Eliza e percebeu que não era um bicho-de-sete-cabeças. Mas mais do que isso, ele sentiu o pequeno nó no estômago se tornar uma tormenta. Largou o copo e entrou às pressas empurrando quem estava no caminho, empurrou a porta do banheiro e bateu ao fechar, ninguém o notou. Lá, ele se inclinou sobre a privada e vomitou algumas vezes. Quando conseguiu respirar novamente, foi até a pia e jogou água sobre o rosto. O banheiro era pequeno, mal caberiam três ou quatro pessoas em pé. Ele deu um passo para trás, puxou a tampa da privada e se sentou. Ofegante ele passou as mãos molhadas empurrando os cabelos para trás e refrescando a testa, se sentiu zonzo novamente e a audição tão sensível que podia ouvir o som da lâmpada falhando durante as voltas da corrente elétrica. A visão embaçou e logo um clarão ofuscou tudo completamente. Ele esfregou os olhos, amargurado pelo desconforto e também uma estranha dormência que vinha lá do fundo, então uma batida na porta o surpreendeu.

— Quem é que tá de malandragem aí? Saiam, galera, tem gente que também quer usar essa parada! — Alguém gritava do outro lado.

Bernardo se esforçou para levantar, seus braços estavam trêmulos. Novamente lavou o rosto e se encarou no espelho, ainda com as mãos molhadas fechou a torneira e molhou a nuca, sentiu melhorar um bocado. Pegou firme na maçaneta e abriu a porta.

— Você estava sozinho aí? — perguntou uma garota que estava na porta.

— Tá tudo bem? — Se aproximou uma outra que estava ao lado. Ele se sentiu incomodado com as perguntas, estranhou ao passar pela pequena fila que pouco momentos atrás não existia ali, então Marcos resvalou contra seu braço.

— Cara! Você sumiu! Pensei que tinha ido embora.

— Eu só precisava de um ar, você estava jogando.

— Jogando? — Marcos questionou espantado. — O jogo acabou faz tempo!

O mais rápido que pôde, Bernardo caminhou pelo corredor até a cozinha e fitou um relógio que descansava sobre o armário, não sabia como o tempo havia passado daquela forma, mas já fazia quase uma hora que havia falado com Eliza. Ele foi até a entrada da casa, olhou para todos os lados e não encontrou a garota, sentiu um aperto no coração por estar perdido e ao mesmo tempo ter deixado escapar a oportunidade de passar um tempo com Eliza. Sem se enrolar, ele partiu abandonando a festa e torcendo para não passar mal outra vez ao menos até chegar em casa.

 As ruas amplas e vazias pareciam como um cenário de filme apocalíptico. A cidade não era feia, pelo contrário, Beladona não carecia de beleza, mas a madrugada permitia que uma neblina sinistra se assentasse engrossando o ar. Bernardo estava com a mente nas nuvens, caminhou por cerca de cinco minutos e então parou para pensar no motivo de não ter usado um aplicativo de carona ao invés de se arriscar na caminhada. Hesitou em tirar o celular do bolso e se manteve na rua principal. Próximo a um supermercado, ele cruzou um beco, não deu atenção de imediato, mas flagrou algo esquisito com o olhar periférico. Mais do que isso, um barulho o assustou e deixou alerta. Ele olhou para trás imaginando estar sendo seguido, mas estava sozinho. Então ouviu uma voz, como um grito, mas abafado. Tomou coragem e decidiu voltar. Deu passos curtos e furtivos. Da entrada do beco ele flagrou a sombra de quatro pessoas e com a meia luz que desviava das paredes dos prédios, reconheceu Eliza.

Sentindo o coração em ritmo cavalar, foram frações de segundo sem reação, agiu tomado por medo e impulso. Se aproximou e notou que uma das pessoas segurava a garota pelo braço de forma grosseira, enquanto as outras duas lhe apontavam a mão e trocavam palavras estranhas.

— Larguem ela! — Ele exclamou ao chegar mais perto. Todos o fitaram.

— Não se meta nisso, siga seu caminho, moleque.

— Larguem ela! — insistiu sem saber ao certo qual seu próximo movimento. Notou que a pessoa que segurava Eliza era um homem carrancudo, se vestia por completo de preto, quase oculto sob parte da sombra, enquanto as outras duas se tratavam de outro homem, visivelmente mais velho e surrado pelo tempo, coberto por um sobretudo, e uma mulher com cabelos curtos, olhar desconfiado e sob um longo casaco de pele de tom vermelho vinho.

— Quem voc…

Um deles deu um passo na direção de Bernardo, mas a mulher lançou a mão à sua frente impedindo. Bernardo não entendia o que estava acontecendo, deu um passo para trás em um movimento de reflexo, mas sabia que se precisasse brigar, a coisa poderia piorar, apesar de saber se virar nas ruas, aquilo parecia muito mais sério. De qualquer forma, ele não desviou o olhar e continuou avançando em direção a eles lentamente.

— Lar… 

Ele tentou dizer novamente, mas em um piscar de olhos a mulher desapareceu, deixando para trás um vulto disforme na neblina que insistia mais fina naquele beco. Logo, sentiu algo se agarrar em seu pescoço, firme como se fosse preso em um mata leão.

— Lugar errado, hora errada! — exclamou a mulher misteriosa com uma voz suave e estranhamente gentil. Bernardo sentiu a mão dela apertar tão forte em seu pescoço que já começava a sufocar, longas unhas marcaram e adentraram a carne o fazendo sangrar. Ele não conseguia falar, não conseguia gritar e nem respirar.

Em uma situação desesperadora, seu corpo todo parecia ter travado, não era o medo, nem desespero, era diferente, como se realmente algo estivesse o impedindo de reagir. Eliza gritou ao fundo, mas o homem que a segurava a puxou brutalmente envolvendo o braço em sua cabeça e a calando. Ainda assim, ela tentou reagir e ele a golpeou fortemente na lateral do rosto.

— Chega de perder tempo! —  exclamou um deles.

— Ninguém pode saber o que aconteceu aqui — afirmou a mulher.

— Então acabe com ele logo, Baltazar não precisa saber disso… — respondeu o outro homem, ele se aproximou empurrando a mulher para o lado, se ele já parecia assustador, se tornou ainda mais ao se destacar fácil do garoto tendo visivelmente meio metro a mais de altura. O corpo gigante e truculento parecia uma parede se erguendo em sua frente. O homem esticou a mão sobre a testa de Bernardo o segurando por completo. A mulher misteriosa se desvencilhou e cerrou o punho maquinando o colega com um olhar afrontoso. 

Bernardo jogou o pé contra o corpo do gigante forçando para trás, se libertou e tossiu forte ao poder respirar novamente, aquilo não havia sido apenas um agarrão incomum e poderoso, havia algo mais ainda afetando seu corpo, algo inexplicável. Ele flagrou de relance um movimento brusco em sua direção, e mesmo um pouco zonzo e com sorte conseguiu desviar do que parecia ser uma lâmina que apontava para o seu estômago. Ele agarrou a mão que o havia prendido e puxou em sua direção com toda a força que lhe restava, o corpo do brutamontes resvalou na sua direção e ele flexinou a perna para conseguir impulso suficiente para atingir o rival com uma forte cabeçada no nariz. O homem cambaleou para trás, tomando todos de surpresa. Elizabe aproveitou e se livrou do que a mantinha refém, Bernardo flagrou apenas um clarão ao fundo, como um flash de uma câmera de fotografia, sem conseguir distinguir o que havia acontecido e quando se voltou para a mulher misteriosa, viu uma forma azul que oscilava em uma padrão esférico se formar na mão dela sendo arremessada e se chocando forte contra seu peito. Por um momento ele se ensurdeceu, a visão embaçou e seu corpo foi atirado brutalmente contra a parede do beco. O choque deixou uma marca de sangue de sua cabeça marcado nos tijolos, enquanto ele sentia algumas costelas se quebrarem. O pulmão parecia explodir, ele bateu de frente contra o chão ao cair e não reagiu. Com a consciência o abandonando, ele flagrou em forma de borrões algumas explosões em tons verdes, vermelhos e cores que sequer reconhecia. Em segundos, tudo escureceu e depois, nada mais além do vazio.

Parte II em breve.


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Câmbio e desligo.