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Fevereiro, 2024

não durmo #14 💬 - por que você deve jogar ou conhecer Hellblade Senua's Sacrifice?

naodurmocast | 8 min de leitura 📖

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Hellblade - Senua’s Sacrifice é um jogo ação-aventura em terceira pessoa lançado em 2017, e que definitivamente ganhou a crítica e o público ao apresentar uma protagonista com psicose e uma narrativa imersa na cultura celta e efeitos do transtorno mental. Mas há muito mais por trás dessa narrativa do que apenas uma aventura, esse é um jogo que fala sobre perspectiva. Eu vou te contar o por quê.

Quando lançado, Hellblade teve que disputar a atenção do público com títulos como Horizon Zero Dawn, Zelda Breath of the Wild, Mass Effect: Andromeda, Destiny 2 e Resident Evil 7: Biohazard, o que já era difícil, além de apresentar uma premissa que fugiu da curva se comparado a qualquer outro jogo: a experiência sensorial da protagonista.

E não me refiro à visão em primeira pessoa, não, é um buraco mais embaixo...

I. A Premissa

Em Hellblade nós jogamos com uma guerreira picto escocesa chamada Senua, e que teve, curiosamente, seu nome escolhido inspirado em uma deusa chamada Senuna, uma deusa celta associada pelos romanos à deusa Minerva, que era a deusa das artes, comércio e da sabedoria - sim, ela era basicamente a Atena dos gregos.

Os povos pictos se dividiram em pequenas comunidades, possuíam relações diversas e também estiveram por um tempo em conflito com os romanos.

Senua cresceu em um pequeno vilarejo em Orkney, próximo ao ano 790. De acordo com o diretor criativo, Tameem Antoniades, a escolha desse período foi pelo fato de os Cristão não terem chegado naquela região ainda, ou seja, a religião celta era dominante.

Além disso, foi um período pouco antes da chegada dos Vikings, que, para variar, são a possível causa do desaparecimento da população celta de Orkney, ainda não se tem certeza do que aconteceu.

Imagem: https://allthatsinteresting.com/picts

A mãe de Senua, chamada Galena, possuía transtornos mentais semelhantes aos de Senua, ela ouvia vozes em sua cabeça e tinha intensas alucinações. De início, entendemos que ela se suicidou por causa dos transtornos, havia uma sina no vilarejo sobre a doença de Galena ter origem vil, maligna e deveria ser eliminada. Zynbel, o pai de Senua, joga o vilarejo contra Galena, e aos 5 anos de idade, Senua vê sua mãe indo para a fogueira.

Senua cresce nas mãos do pai carrasco e sob diversas torturas e isolamento, mas em uma de suas "escapadas", ela conhece Dillion, um jovem guerreiro. Eles acabam se aproximando e criando um elo, o que parece ser a primeira experiência de amor de Senua, e não somente o amor no sentido de paixão, mas de empatia, pelo menos desde que sua mãe morreu.

Certo. Agora temos um background e o catalisador.

Na sequência, uma praga se espalha pelo vilarejo, Zynbel culpa Senua e ela acaba se isolando. Nesse isolamento ela conhece Druth, um velho ferido que ela ajuda e convive por pouco tempo até que ele morre. Durante esse pequeno período, ele conta histórias sobre a cultura e mitologia Viking, coisas que ele aprendeu durante um tempo em que foi prisioneiro dos “homens do norte”.

Esse personagem é interessante, além, é claro, de seu valor na jornada de Senua, mas também por ter sido inspirado em um celta irlandês chamado Findan, que foi escravizado pelos homens do norte e conseguiu escapar, se tornando um monge.

Ao retornar pro vilarejo, Senua encontra tudo destruído e todos mortos. Um ataque viking acaba com seu povo e pra piorar, ela se depara com o corpo de Dillion, suspenso em um ritual de morte e viking, conhecido como águia de sangue.

Se você não chegou a explorar a história dos povos nórdicos, os Vikings eram conhecidos por muitas coisas, mas principalmente pela sua brutalidade e a águia de sangue é um exemplo da capacidade dantesca dessa cultura.

Não se tem certeza se o ritual era parte das histórias ou uma prática real, mas, a princípio, eles deitavam a vítima e cortavam as costelas da espinha, assim abrindo espaço para puxar os pulmões para trás, estendendo eles como se fossem as asas de uma águia.

Com isso, o jogo começa. Senua está disposta a atravessar o submundo Helheim para resgatar a alma de Dillion de Hela, a deusa da morte.

II. A psicose como tema do jogo

Senua além da condição herdada pela mãe, vem desde a infância, passando por torturas e uma baita opressão. A construção da sua personalidade foi tardia e ela carrega claramente sintomas de depressão e ansiedade, assim como a psicose. E é nesse ponto que o jogo assume a sua particularidade. Mas a gente já vai falar sobre a experiência disso no jogo.

Durante o desenvolvimento, a equipe da Ninja Theory buscou tomar cuidado com a construção de Senua, não apenas na sua história, mas o seu caráter e valores, assim como todas as condições para a maneira como ela vê o mundo. Hoje, as doenças mentais ainda são tabu por n motivos e o passo que a Ninja deu ao trazer esse jogo foi talvez o mais arriscado.

O desenvolvimento contou com o acompanhamento de profissionais da área de saúde mental e também pessoas que sofrem de transtornos. O objetivo era trazer para o jogo, de maneira visual e sonora, algumas características de sintomas da psicose, que, por sua vez, é um transtorno mental onde a pessoa se desconecta da realidade. Ela ouve vozes, tem alucinações e delírios, desordem de pensamento e também afeta outras funções.

Mas é difícil falar sobre a Psicose de Senua em um tom que não seja apenas a interpretação do jogo, como o espectador da sua deriva. Então vou sugerir o vídeo do Sidcourse, Hellblade and Living with Psychosis, no qual o Sid fala sobre a visão do jogo, da sua perspectiva, como uma pessoa que sofre do transtorno.

Voltando ao impacto da experiência, algo muito comum é ver críticas voltadas a produções artísticas que buscam explorar temas como transtornos mentais, obesidade, racismo e outros. Porém, quando se trata de uma obra artística, nós precisamos ter em mente dois pontos fundamentais. A intenção e a intenção, eu vou explicar.

III. A intenção

The Whale foi um dos filmes mais notáveis de 2022, não apenas por trazer Brendan Fraser de volta para as telas, em uma atuação formidável, mas por apresentar um protagonista no seu extremo da obesidade e afundado na depressão.

E assim, as críticas mais recorrentes eram a maneira como a obesidade era representada. Talvez a falta de sensibilidade, de não ser alguém que realmente sofre ou sofreu com aquilo ali, para representar de forma mais crível.

A intenção de The Whale nunca foi retratar a obesidade de fato ou sequer a depressão, mas é um retrato do trauma, dos machucados que ganhamos com a vida e nunca deixam de sangrar, e o personagem de Brendan sofre pela escolha que o afastou da sua filha e também pela perda do parceiro.

É um conflito e um profundo luto.

A outra intenção não é mostrar os lados da obesidade, pois ela é um dos possíveis efeitos colaterais. Ele poderia ser alcoólatra, viciado em crack e cocaína, sexo ou violento, entende?

A intenção do filme é propor cenários nos quais todos os personagens carregam uma perda e isso se reflete no seu comportamento e nos efeitos disso para com todos ao seu redor.

Os transtornos que Senua possui, principalmente a psicose, não servem no jogo como uma explicação do que de fato é a psicose ou os sintomas. Ele serve ali como um catalisador de experiências de Senua. Um argumento pro seu comportamento e, principalmente, com o objetivo de tentar mostrar aos jogadores um fragmento do quão vertiginosa é a realidade que Senua encara e como isso afeta a sua jornada.

Em uma entrevista com a The Harvard crimson. Dominic Matthews, o head do estúdio Ninja Theory, disse o que uma introdução livre seria algo como:

“A experiência de cada um é única. Não estamos tentando dar um plano ou uma resposta para abre aspas, é assim que se parece viver com Psicose, fecha aspas, mas sim uma maneira de vivenciar a psicose que seja verdadeira a experiência vivida.”

Acompanhando Senua, podemos enfrentar incontáveis momentos onde vemos vultos, reflexos sem origem, objetos e pessoas que aparecem desaparecem, às vezes, nunca estiveram ali. Além de visão turva, efeitos de luz quase cegantes, confusos, caleidoscópicos e outros.

Os sons capturados com microfone binaural quando jogado no headphone, parecem vir de todos os lados de maneira singular, como se estivesse em nossa mente. E a voz Senua fosse só mais uma.

Hellblade é um jogo peculiar que certamente tem quem ame ou odeie. Acredito que não há um meio termo, ele não é feito para ser fácil, mas é um desafio, pois assim como Senua está aprendendo sobre o mundo ao seu redor.

Nós temos que aprender juntos.

Não há indicações de botões para ações básicas, pois Senua também está aprendendo sobre suas capacidades, nem existem status e isso reflete a ingenuidade da protagonista em relação aos perigos do mundo, não há inventário, mapa, sequer um menu, tudo isso, pois assim como Senua, nós também estamos aprendendo.

Essa sensação de página em branco unida ao conjunto de experiências nos dá uma imersão densa, curiosa e, como já dito, vertiginosa.

A gameplay focada apenas na narrativa reflete também um momento interessante que vivemos num mundo de jogos hoje, no qual o jogo dificilmente sobrevive, existindo sem um worldbuilding, sem a construção criativa intuitiva de um mundo, de um plano de fundo.

Há alguns anos, facilmente encontraríamos jogos de plataforma e, principalmente, de tiro em primeira pessoa sem histórias, com lore minimalista o suficiente para contextualizar as situações, mas a necessidade de compreensão sempre existiu. Metal Slug já fazia essa storytelling para dar sentido a gameplay, mesmo sem textos ou diálogos, mais através de cenários, títulos como The Last of Us, Tomb Raider e tantos outros que encantam pela narrativa, principalmente jogos indies que usam do storytelling como força motriz, uma vez que os recursos são extremamente diferentes de um triplo A, eles foram e são a chancela de que os jogos são uma nova forma de contar histórias e se não tiver a qualidade, o cuidado cinematográfico podem estar caminhando para o sucesso momentâneo ou simplesmente o fracasso.

Mas o porque isso acontece? Bom, não apenas os estilos de jogo mudaram com os anos, mas também a jogabilidade e pontos fundamentais, como o tempo, dificuldade, etc. Particularmente, eu vejo que o principal agente dessa mudança foram os RPG que acabaram conquistando pela narrativa world-building e isso demonstra claramente o valor dos cuidados dados na criação de uma obra.

De volta à Hellblade. A história é o alicerce da gameplay, a cada momento há uma desconstrução e construção da visão do mundo de Senua, e esse é o nosso guia.

Senua’s Sacrifice é mais do que tudo, uma experiência e para que você consiga entender, ela por completo, é preciso se deixar levar e, assim como Senua, buscar por respostas além do que está no caminho.

Nº14 • T02 • FEV/24


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