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Abril, 2022

não durmo #13 - mensagem perigosa - como o filme Sorria erra como horror

naodurmocast | 11 min de leitura 📖

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Quando os primeiros trailers apresentaram Sorria ao mundo, já estava claro que se tratava de um filme de horror com jumpscares que abraçaria temas como suicídio e traumas. Porém, a ousadia do diretor Parker Finn em usar transtornos psicológicos e saúde mental como artifício para a sua jornada assustadora, pode ter sido o principal ato de sabotagem que acaba condenando o filme. Hoje, nós vamos conversar um pouco sobre como é nesse ponto em que Sorria erra, e muito, como horror.

Sorria não é um filme complexo, na verdade, ele entrega diversas conveniências desde o início, se propondo a não ser um filme complexo mergulhado em analogias e filosofias que criam um thriller psicológico de horror, ele é simples! E para quem já assistiu Corrente do Mal do diretor David R. Mitchell, pode soar até como uma piada.

Em Sorria acompanhamos a vida da Doutora Rose Cotter (interpretada por Sosie Bacon, que inclusive já mandou muito bem em outros projetos, como Nosso Jeito de Ser). Rose é uma terapeuta dedicada que trabalha com diversos e variados pacientes com quadros de doenças mentais e transtornos psicológicos. Em um certo momento, ela recebe uma paciente, Laura, que recém presenciou um suicídio, e está traumatizada, até aí, temos um bê-a-bá, mas o lance é que o trauma da paciente não é simplesmente pela cena de horror que ela presenciou, mas por ela dizer que há algo sobrenatural a perseguindo e é algo nocivo.

Durante a breve conversa entre a paciente e Rose, temos um diálogo de questionamentos em relação à sanidade mental da garota, além de argumentos sobre tudo o que ela está sentindo e supostamente vendo, são reflexos do trauma que ela teve. Esse ponto é uma primeira pincelada no que Sorria erra e continua errando por todo o filme. No meio da conversa, a paciente tem o que parece ser um colapso seguido de um momento de silêncio em que ela encara Rose com um sorria sinistro, então, comete suicídio em frente a Rose, e para variar a ajuda chega em seguida. Então o filme começa a realmente andar. 

Nos próximos dias, Rose tem visões com a paciente morta, escuta coisas e também vê outras coisas perturbadoras, como em uma cena que ela passa em frente ao quarto de um de seus pacientes e o vê sorrindo de maneira macabra, semelhante à Laura. Ela grita pedindo ajuda e imediatamente médicos entram no quarto para conter o homem, que na realidade, estava apenas dormindo. Sim, mais alucinações.

O filme segue com revelações sobre realmente existir uma entidade sobrenatural, que se espalha se agarrando em testemunhas de suicídios de pessoas que essa entidade estava agarrada. Essa entidade corrompe as pessoas trazendo o horror para suas vidas, as perturba psicologicamente com visões e alucinações, além de lapsos da percepção da realidade não só para elas mesmas, mas com o mundo ao seu redor. E existem apenas três opções para se livrar dessa entidade. Mas antes de falarmos sobre elas, precisamos entender também como o mundo se comporta em relação às pessoas que estão “possuídas”, vamos dizer assim, pela entidade.

Quando Rose começa a mostrar sinais da sua perturbação para pessoas em sua vida, como seu esposo e irmã, ela é colocada em cheque, e é aqui que o filme começa a forçar a barra. As ações incompreensíveis de Rose são constantemente julgadas como falsas, que ela está tendo efeitos de um trauma, e não apenas pelo suicídio que ela presenciou, mas também por um evento do passado envolvendo sua mãe. Suas atitudes cada vez mais violentas e imprevisíveis, apenas reforçam que ela está em uma condição de doença mental que precisa de ajuda. Parker Finn faz isso, ele explora a ideia de como existe um tabu em relação a doenças mentais, a reação do mundo com a Laura é o mais puro reflexo disso, é a virada do jogo, quando ela deixa de ser a pessoa que questiona a sanidade e começa a ser questionada, é o momento em que isso fica ainda mais claro, por ela entender plenamente suas faculdades mentais e ainda assim ser uma vítima.

Mas o que incomoda nessa construção ao redor do tabu, da aceitação e da importância das doenças mentais e traumas, de que elas precisam de atenção, cuidado, tratamento e acima de tudo, empatia e respeito, acaba sendo esculachada por cenas de desdém que tornam isso uma piada, eventos em que é difícil acreditar que as pessoas tomariam atitudes como tomaram no filme. Se tivermos um momento de suspensão de descrença, ainda é difícil.

Quando se trata de traumas e doenças mentais, nós entendemos ser um tema sensível por estarmos em uma sociedade que ainda não sabe exatamente como lidar com isso, estamos evoluindo, a ciência está aprendendo, mas a ideia de um fardo, de que a convivência com pessoas que sofrem disso é uma tarefa exaustiva de cuidado e amor, ou algumas vezes também traumatizante, são substituídas no filme por simples argumentos de “você está louca”, “você perdeu a cabeça”, “você não sabe o que está fazendo”. E todo o potencial que poderia ser explorado em Sorria, todo o diálogo que poderia ser posto ao público para ao menos fazer com que as pessoas refletissem sobre a importância disso, é jogado pelo ralo e simplesmente substituído por cenas superficiais e jumpscares.

Apesar do filme possuir vários pontos interessantes, como trazer doenças e os traumas para mascarar uma criatura sobrenatural e a descrença da sociedade ser o que alimenta essa entidade, a fotografia, que mesmo simples, consegue criar uma bela ambientação e com diferentes intensidades que cabem bem com as cenas, Sorria acaba se tornando um filme de horror e de sucesso (ultrapassando 100 milhões de dólares em bilheteria e com uma sequência quase certa), que também é um filme perigoso. Agora, sim, podemos falar sobre as três formas de fugir da entidade.

O suicídio não é apenas uma maneira da entidade avançar para a próxima vítima, mas, apesar de não ser dito explicitamente no filme, ele surge como uma possibilidade para parar a entidade. Se a vítima se suicidar em isolamento, a entidade, possivelmente, acabaria presa com ela, pois não teria um expectador para o feito. Enquanto essa ideia parece plausível, ela é uma das mais tenebrosas se pensarmos que ela coloca a ideia do suicídio sendo uma válvula de escape para o trauma da personagem, seria tirar o fardo de jogo e livrar as pessoas, como se o sofrimento da personagem fosse algo que também traz, unicamente, o sofrimento de quem está ao seu redor.

Temos a segunda, ser tomado pela entidade até seu ato final, o suicídio por força desse ser sobrenatural e sua passagem para outra vítima. Um dos pontos que me incomoda com essa proposta, mas, ao mesmo tempo, é ligeiramente interessante, é como o trauma pode se propagar, não como uma doença, mas pela fragilidade que temos em encarar determinados eventos, nesse caso, o suicídio assistido poderia traumatizar o expectador, gerando um trauma igual ou mais nocivo e criando uma série de eventos desastrosos.

Por fim, a ideia mais deturpada de Sorria está no isolamento. Quando a sacada da Rose é se isolar para confrontar a entidade, ela cria uma perspectiva perigosa de que o trauma pode ser superado sozinho, de que talvez até deva. Não estamos falando aqui sobre a relevância de uma interpretação, na publicidade, tem uma espécie de lema que diz que “uma mensagem não deve, de forma alguma, carregar ambiguidade”, e é isso que Rose faz quando aborda o isolamento, ela cria a ideia de que a opressão, a doença ou trauma, seja por parte da pessoa que sofre ou das pessoas que convivem com ela, é uma opção válida como uma solução. Isso é extremamente perigoso. Hoje vivemos em uma sociedade que ainda não sabe lidar com esses pontos, já falamos isso, mas é tão importante frisar nisso, que podemos colocar que o maior erro de Sorria é deixar com que suas intenções pudessem ser questionadas.

Sorria é um filme de horror e fala sobre doenças mentais, traumas, descasos sociais, tabus, mas ele erra e muito ao não ser mais claro sobre suas intenções, se concentrando apenas no sensacionalismo, clichês do horror e possivelmente passando uma mensagem, mesmo que subjetiva, um tanto quanto perigosa.

Obrigado por estar aqui, e até a próxima.

Nº13 • T02