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Abril, 2022

não durmo #12 - não floreie a simplicidade - o lado simples e encantador de Mare of Easttown

naodurmocast | 13 min de leitura 📖

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Deixa eu te falar que ainda não consegui definir o que faz um bom thriller. É a complexidade de resolver os mistérios, assassinatos? A inteligência por trás do vilão ou herói? Acho que talvez seja o que menos esperamos, o ordinário, a simplicidade em criar empatia com o público nos pequenos detalhes e nos arrastar aos poucos para cenário inimagináveis, e vamos falar um pouco disso e da série Mare of Easttown.

Mare é uma detetive policial na cidade de Easttown, e nessa trama de uma única temporada, ela está tentando resolver dois mistérios: o desaparecimento de uma jovem, que continua em aberto há um ano, e um recente assassinato de outra jovem encontrada em um riacho nos arredores da cidade.

Já faz algum tempo que passamos pela escassez de boas produções baseadas no gênero thriller, crime e drama. Talvez tenha sido a evolução do mercado cinematográfico ou simplesmente se esqueceram como fazer o bom uso do mistério, sem tratar a narrativa com uma perspectiva extraordinária, mas dando ênfase em detalhes que criam a empatia com a audiência.

Podemos dizer que Mare of Easttown é uma série que consegue suprir essa carência, ao entregar um mistério não tão complexo, mas bem amarrado, e com um plot twist inesperado. Neste ponto, não quero dizer que ela traz uma inovação, mas sua narrativa é cuidadosa, adicionando detalhes aos poucos e criando esses laços com a audiência, nos permitindo conhecer gradativamente cada personagem, especular diversas hipóteses sem parecer absurdo e nos agracia com um final satisfatório.

Kate Winslet entrega o melhor papel da sua carreira, e não foi preciso uma super produção ou um roteiro cheio de voltas e exibicionismos, mas apenas e somente a pura simplicidade, o ordinário. Okay, agora nós vamos entrar no que realmente interessa. Pois é isso, essa série não se trata de crimes, sequestros ou investigação. Diferente do que esperamos de um thriller, ela nos desmonta em pequenos mergulhos em relacionamentos e a cadeia de efeitos que esses relacionamentos possuem.

Easttown é uma cidade relativamente pequena, e praticamente toda a comunidade com contato ou relevância acaba tendo alguma relação com Mare. Esse cenário também tem o suporte do ambiente, que atravessa toda a série com uma cinematografia depressiva, opaca, mas que trabalha perfeitamente com contrastes quando a intenção é acender certas emoções.

Mare, assume um papel central, indo além das suas capacidades para decifrar os crimes, mas também sendo o catalisador das personagens que são aos poucos adicionadas na série. Nós não temos uma entrada repentina, com uma história de background acelerada, mas pequenas novas figuras que se aproximam explicitando a sua relação com o universo criado e também Mare.

Há uma cena incrível que mostra bem esse fato, quando ela vai até a casa de Kenny, pai de uma das vítimas, comunicar sobre o assassinato, e ela liga para seus primos estarem presentes no momento, isso tudo, pois ela já sabia o que esperar de Kenny, uma reação explosiva e violenta. Esses pequenos fragmentos, diferente de outros thrillers que nos enchem de pistas, servem aqui como migalhas de pão que vão nos fazendo suspeitar de tudo e todos.

Na jornada de Mare, além do drama que a sua profissão carrega e problemas como a reação da mídia pelo caso ainda em aberto, desdenhando todos os seus esforços, se estende ao pessoal, e aqui temos a complexidade do ordinário. Mare está claramente afundada em problemas com os quais não sabe lidar, Kate nos mostra uma personagem afetada pela idade, pelo modo como leva a sua vida em todos os aspectos, estamos falando aqui de comportamento, pois Mare é ativa, fugaz, ela é espinhenta, se pudermos colocar assim, talvez pelos calos ou traumas da vida, mas claramente uma pessoa dura.

Mare comendo salgadinhos, a maneira como ela se comporta com sua família, os diálogos com pessoas que ela vê como amigas, isso cria uma personagem real, e nos aproxima da sua perspectiva sobre os eventos que acontecem em sua vida. Não atoa, se nos deixarmos levar, podemos até nos confundir tanto quanto ela, no que os instintos dizem.

Mas o principal fardo que ela carrega é a perda do filho. Diagnosticado diversas vezes com diferentes transtornos psicológicos, ele também era dependente químico, e nas poucas cenas que presenciamos entre os dois, é brutal as sequelas que ele deixou nela tanto em vida quanto após a morte. Em certos aspectos, essa série carrega isso, os resultados de atitudes que ecoam nas pessoas próximas e acabam criando esse efeito dominó.

Eventualmente, a tensão e o drama são quebrados por personagens que surgem na trajetória de Mare para lembrá-la que ela ainda é humana, como Guy Pierce, na pele de um escritor de passagem pela cidade que acaba sendo um caso amoroso e também uma forma de entendermos o que fez com que Mare dessa essa pausa em sua vida social, talvez por ainda estar tentando lidar com os traumas, ou o fato dela ter um olhar aguçado e experiente sobre, praticamente, todas as pessoas do seu círculo social.

Não tão impactante é a presença do escritor, mas também de Colin Zabel, um jovem investigador forasteiro colocado ao lado dela, totalmente em desaprovação, e interpretado pelo Evan Peters. Apesar da atuação incrível que ele desempenha, assim como o par romântico, parece que de todo o trabalho maravilhosa na construção dessa personagem, ambos estão ali de maneira superficial.

Não estou dizendo que os papéis são ruins, pelo contrário, eles criam uma ótima sinergia, mas assim como o argumento desse vídeo ser sobre o extraordinário dessa série, estar no ordinário, no papel de Mare como mãe, como detetive, como mulher, com problemas aqui e ali, lutando diariamente para resolver pelo menos um pouco de cada vez, ambos os personagens que então em sua vida são forasteiros. Já falei que talvez a sua percepção sobre as pessoas em seu círculo social tenha a deixado retida por tanto tempo, mas também esses personagens parecem servir principalmente para evidenciar a sua solidão.

Por algum motivo, Mare me lembrou Dex Parios, de Stumptown, uma série incrível com Cobie Smulders e inspirado em um quadrinho, onde ela interpreta uma investigadora particular. Porém, o que cativa na série, que é de longe diferente da ambientação e estilo presentes em Mare of Easttown, é o lado ordinário, a maneira como as características da protagonista dispensam palavras para entendermos o que ela está sentido, ou como ela vai reagir, e principalmente, o quão falha elas podem ser.

Definitivamente, Kate se entregou ao papel, o making of da série traz muito conteúdo extra sobre como ela e também as outras personagens se dedicaram para dar vida e preencher esse universo com atuações emocionantes e singulares, ao mesmo tempo que no final temos aquele gostinho de que gostaríamos de ver Mare em ação novamente, mergulhando no mistério e resolvendo quebra-cabeças enquanto aprende, como nós, a viver um dia de cada vez e resolver um problema de cada vez, também temos a certeza de que seu ciclo está completo, e talvez à história deva ser simplesmente assim.

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Por fim, segue alguns links interessantes 🔗


Indicação da semana 🎥

Eu amo filmes com alegorias, e foi uma grata surpresa encontrar Lamb, do estúdio A24 - que vem entregando uma joia mais incrível que a outra - do diretor Valdimar Jóhannsson no Mubi, com a fantástica Noomi Rapace e Hilmir Snær Guðnason.

Lamb é um filme visceral, não no sentido de te causar ansiedade, mas por se arrastar por incontáveis momentos em que tudo parecia se fazer em frangalhos. A ambientação tem a graça de uma fotografia cuidadosa, que se esforça para nos trazer um tanto de nostalgia e a falsa tranquilidade do isolamento, enquanto somos martelados constantemente por cenas subjetivas. É uma mistura interessante, que talvez pudesse ser um pouco mais breve e direta, mas funciona para quem não tem pressa e gosta de histórias que nos desafiam.

Clica aqui para conferir o trailer. Depois que assistir, volta aqui e me conta o que achou, quem sabe Lamb não aparece no nosso próximo episódio?!

Obrigado por estar aqui, e até a próxima.

Wash Albuquerque

Nº12 • T02