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Julho 02, 2021

nanquim


contos | 15 min de leitura 📖

Jon é uma artista reclusa, a típica nerd que prefere viver em seus próprios devaneios e não encarar o mundo e suas verdades. Durante uma noite na biblioteca da cidade, enquanto estudava anatomia de animais e desenhava criaturas fantásticas em seu caderno, ela foi surpreendida por uma garota que se aproximou de surpresa, após uma breve conversa, a garota parte, mas deixa um bilhete escondido entre as folhas de desenhos com uma mensagem misteriosa: Rua Olavo, 23, 23, 23.

Após desvendar o quebra-cabeças, Jon mergulha em um mundo de esquisitices, tendo seus sentimentos e emoções postos a prova diante de um horror inesperado e sobrenatural.

Um agradecimento especial para toda a galera que deu like no tweet e tornou essa publicação realidade e também as Apoiadoras. <3

Sugestão para acompanhar a leitura:



Nanquim

“É agridoce pensar que o improvável ainda é possível!”

I.

Senti a textura de arranhões do tempo sobre o carvalho liso da estante, coberto por verniz e poeira. A primeira nota de Bear em Michelle deu tons de espetáculo para a luz fraca das lâmpadas que tremiam em um medo coletivo da história que pairava sobre essa velha construção. Os cheiros de papéis de outro tempo e de produtos de limpeza de segunda se misturavam como um coquetel vagabundo, mas entorpecente, tal como os de uma ou duas noites anteriores que prenunciaram os acordes punks que ainda zumbiam nos meus ouvidos.

Para um lado ou outro, sentia minhas pernas como que trocadas por patas bovinas e pela esperança de encontrar um fio condutor para fora daquele labirinto. As estantes pareciam se afunilar na escuridão e, enquanto eu caminhava entre elas, as histórias que deveriam ser contadas pareciam carecer de vida, buscando em mim, com longas pinças invisíveis, um fragmento da minha excentricidade a cada movimento.

As prateleiras da biblioteca eram como poderosos colossos que suportavam inúmeros mundos sobre suas costas, espectadoras de aventuras famosas e outras já esquecidas. Edições clássicas em tecido surrado com tinta já apagada formavam extensas coleções que jamais seriam lidas, mas havia também jovens narrativas exaustas de se abrir e fechar. Eu ainda estava na segunda entrada de Reminiscence, passando os dedos sobre Cervantes e Dumas, com flashbacks de um estranho sonho da noite anterior, sonho de poucas horas, perdida em minha realidade, abastecida pela ansiedade, um pouco de dor e fome. Parei por acaso em Jewelle. Terror, como se não bastassem os dias. Tudo bem.

A longa mesa no corredor principal era iluminada por abajures de metal, tão bem organizados que poderiam dividir a mesa com espaços metódicos para cada indivíduo sentado ali. Os veios da madeira rústica se mesclavam com a resina, criando um deleite para os olhos distraídos ou apreciadores de mobílias, arte ou simplesmente a beleza dos detalhes. A cadeira não era tão confortável, mas o ambiente, sutilmente obscuro e rodeado por abóbodas e pilares, proporcionava uma dimensão nostálgica e convidativa. Era suficiente.

Descansei a pilha de livros sobre a mesa, sentindo uma dor chata no ombro. Não conferi o relógio, mas tinha certeza de que havia perdido horas apenas vagando por entre os corredores da biblioteca e navegando por músicas cafonas. Encarei os livros empilhados, estudos de anatomia de seres vivos e outros nem tão vivos assim. Quando abri meu caderno, dei de cara com uma meia poesia de outro dia qualquer, perdida entre os rabiscos tortos que insisto em chamar de arte.

“Quem vai me julgar?”, pensei.


Avistar de longe uma pequena perfeição,
Caminha em meio ao campo turvo,
Histórias de histórias, não me canso de ouvir,
Tais ilusões mal cabem na minha boca,
Pensamentos perplexos e complexos,
E a necessidade de palavras para sentimentos.

Um mundo destes, ó perfeito, e eu o crio,
Enquanto meus pés sangram sobre espinhos,
As flores no horizonte final aprecio.


Não há frescor como felicidade de outrora,
Não distingo mais o meu mundo, não me importo,
Espero apenas que possa ouvir,
Sejam palavra ou berros, não me importo,
Vou destruir meu diafragma,
Palavra inúteis, aproveite o carpe diem,
Agora, me deixe,
Deixe morrer os sonhadores...


Com lápis para criar e borracha para consertar as merdas que escapavam com gestos trêmulos, eu explorava detalhes de uma víbora com asas de coruja no caderno, buscando também alguma forma de encaixar a cabeça de um tigre, quem sabe. De repente, senti olhares sobre mim. Disfarcei espiando pela visão periférica, tirei um dos fones como desculpas para virar um pouco mais, mas meu cabelo solto me sabotava constantemente, permitindo-me flagrar apenas um vulto passando por trás de mim. Enquanto escutava os passos se afastando, senti cheiro de amoras, com um leve amadeirado de acácia. Do outro canto dos olhos, notei que uma garota se afastava, carregando alguns livros nas mãos ao lado do corpo, certamente com desdém, pois parecia com pouca vontade de levá-los e muita de jogá-los para longe. O jeans preto se escondia sob o coturno, uma regata longa da mesma cor caía sobre uma camisa flanela amarela amarrada na cintura. A garota usava uma trança embutida, com as laterais da cabeça raspadas. Movia-se como uma gladiadora.

Quando me dei conta, a víbora estava de lado, sem cabeça. O esboço tinha formas negras, lábios grossos, nariz formoso e olhos imperativos. Uma trança, sim, a ficção imita a realidade. Tantos detalhes que eu mal conseguia pôr em imagem. Respirei fundo e folheei o caderno, uma sequência absurda de monstruosidades que pareciam conversar com cada momento do meu dia, da minha vida. Irritada, furiosa, amável, perdida, lúcida, excitada. Mas nenhuma face amigável.

Era o meu bestiário, o reflexo da minha realidade, apenas minha.

“Eu diria que é um dragão e metade ovelha, mas sinceramente não reconheço esses braços e garras”, disse a garota da trança, sobre meus ombros. Meu coração disparou, não por susto, talvez ansiedade também não faça jus a sensação, mas vai servir por ora; ansiedade.

“São garras, acho. Apenas garras”, respondi encabulada. A garota fez um som entre os dentes; foi sua forma de dizer que havia sacado. Ela estava observando sobre meu ombro esquerdo, perto o bastante para eu sentir o calor do seu corpo — não que isso fosse algo difícil, já que a biblioteca costuma ser um local frio tarde da noite. A trança da garota estava pendurada como densos cipós que escorriam também sobre mim, cabelos úmidos e escuros. Ela respirava forte e tinha um tique peculiar como quem se expressa com um simples e breve “hum”, mas leve, disfarçado, vindo lá de dentro e em pausas ritmadas. Podia ser o seu charme. A pele negra era lisa como cetim, marcada por algumas pintas pretas. Encarei-a ainda sem jeito, arqueando a sobrancelha na esperança de que ela entendesse e eu não precisasse perguntar o que ela queria, ou se ela queria se sentar, ou se ela queria saber mais sobre aqueles desenhos.

Ela me encarou de volta e sorriu.

“Como um sátiro? Ra! Eu devia ter adivinhado. Mas qual o sentido do dragão? Não deveria ser um sátiro?”, ela perguntou e puxou a cadeira que estava ao lado, arrastando-a sem dó. A madeira rangeu ao correr sobre o piso. Se havia veludo ou espuma sob as pernas da cadeira, deviam estar gastas há anos. A garota sentou-se numa postura endurecida, apoiou o cotovelo sobre a mesa e o pé direito sobre o acento, quase abraçando essa perna com o outro braço. Ela abriu um sorriso largo.

Demorei um pouco para pensar em algo que pudesse ser lógico. Ela tinha um olhar profundo, deveria ter olhos negros perolados, com a íris quase oculta, mas o esquerdo era de um azul céu, não aquele denso que parece um tecido jogado sobre a Terra, mas aquele azul borrado, como de madrugadas de inverno que só não são cinzas porque ainda falta pouco para nevar ou chover. “É, apenas revolta. Sabe, uma metamorfose, eu acho”, voltei os olhos para o desenho buscando uma forma de explicá-lo além daquela sentença confusa, mas sentir e desenhar é mais fácil do que falar, definitivamente, caso contrário, os artistas estariam extintos. Ou… seriam poetas? “Quando você se sente cansada de sentir o mundo te ameaçando, fica vulnerável. Então tem dias em que acorda em uma fúria tão profunda, que parte de você quer desafiar o destino, voar para longe.”

Gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas”, ela disse.

“É, Caio sabia das coisas”, completei. A garota se inclinou, novamente espiando o caderno, fez um gesto pedindo autorização para folhear, e eu aprovei. Ela passou página por página, com cuidado, como se manuseasse um daqueles velhos livros que preenchiam as incontáveis prateleiras da biblioteca, com aspectos cansados e a aparência de que iriam se desfazer em farelos.

“Você sempre desenha o que sente?”, fitou-me.

“Sempre que não consigo apenas sentir”, respondi sentindo-me confortável. Era estranho como a presença dela parecia facilitar algumas coisas, como me expressar. Estranho como a estranha. “Normalmente de noite, na madrugada, com barulho de chuva ou trovões”, completei.

“Sabe, são incríveis. Eu gosto de escrever de madrugada também”, ela passou a mão na testa empurrando alguns fios que fugiam da trança e insistiam em cair sobre o rosto, então continuou: “Parece que a solidão ou a nostalgia faz isso com a gente, dizem que acontece com pessoas inteligentes, mas eu não concordo. Talvez aconteça com pessoas atormentadas, cansadas, isso faria mais sentido”, ela mordeu os lábios e me encarou com o olhar apertado. “Dizem que assim como palavras, desenhos também podem ser especiais ou especialmente perigosos. Há quem acredite que assim como o que escrevemos, o que desenhamos também cria vida, em algum lugar, em algum momento.”

Sorri. Confusa ou descrente, não sei ao certo. “Até hoje não vi nenhum desses no noticiário”, falei sarcasticamente, e ela riu.

“Não da nossa realidade”, ela respondeu.

“Você acredita nisso então?”

“Você não?”

Definitivamente eu não sabia mais sobre o que estávamos falando, mas antes que eu dissesse qualquer coisa para quebrar o silêncio que se instalou rapidamente, ela empurrou o caderno de volta para mim. “Eu sou Lara”, ela disse como se tivesse acabado de chegar e aquela fosse sua primeira frase. “Me chamo Jon”, tentei apenas ir no embalo e pareceu fácil.

“Foi um acidente”, ela disse ao perceber como eu encarava seus olhos.

“Estava pensando em heterocromia.”

“Normalmente pensam, mas não.”

“Então você… não enxerga?”, realmente era diferente de heterocromia, mas a ausência do pigmento parecia um trauma.

“Com esse olho não”, ela puxou abaixo da pálpebra do olho claro fazendo careta. "Bom, preciso ir agora", ela se levantou e, tão estranhamente como chegou, parecia estar partindo. "Quem sabe a gente se vê por aí, e que seja doce", finalizou com Caio e um meio sorriso. Fiquei observando enquanto Lara se afastava, com algumas dúvidas e sensações peculiares, pois raramente com alguém eu ia além da sapiofilia.

Voltei às pesquisas e desenhos em seguida e acho que permaneci ao menos mais uma hora lá, o bastante para a bibliotecária quase me pôr para fora, e com motivos: já era tarde e quem não gostaria de ir para casa descansar? Quando empilhei os livros de volta, empurrei meu caderno para o chão sem querer. Algumas folhas se espalharam, mas, enquanto eu juntava a bagunça, percebi que havia algo rabiscado em uma delas, não com a minha letra.

Puxei o pedaço de papel dentre as páginas.

"Rua Olavo 23, 23, 23", li o papel em voz alta, tentando entender o que significava. De início parecia algo idiota, mas começou a fazer sentido quando meu relógio apitou 23 horas, naquela noite do dia 22. Coincidência? De forma alguma. Lara havia deixado aquele endereço? Provavelmente. Eu me lembraria se tivesse o anotado.

Na volta para casa, fiquei me questionando sobre as intenções de Lara, o que a motivaria a escrever aquele endereço. A lua estava cheia, ofuscada casualmente por nuvens carregadas que pareciam tiras de jornal rasgadas em uma tentativa desesperada de isolar a luz vinda do luar. Cada pedalada que eu dava parecia um gracioso convite para o tempo estagnar… Um convite para que o tempo deixasse sua viagem inquestionável de lado para apreciar os minutos de contemplação da mescla de natureza morta e viva, onde as ruas, velhas casas e carros estacionados contrastavam com a neblina que se instalava na cidade, vinda dos bosques que cercavam toda a região.

Em casa, tudo já estava apagado, como de costume. Passei como um gatuno furtivo por entre os corredores sem ansiar pelo cárcere que me esperava, mas, de toda maneira, estaria mentindo se dissesse que não me sinto assim constantemente.

O brilho da tela do computador inundava o quarto deixando incontáveis lacunas, como em uma pintura clássica com seus segredos, revelando papéis e carvão espalhados pelo chão, outras folhas coladas pelas paredes com rascunhos de criaturas esguias e sem vida, livros velhos junto com outros nunca abertos abarrotando uma estante gasta, cobertores enrolados como pernas de amantes em uma noite de apogeu. Mas não havia romance nesse quarto.

No canto, sentada abraçada aos joelhos com uma dor familiar que parecia pulsar no fundo da minha cabeça, eu apreciava cada tragada do cigarro e insistia em bater suas cinzas sobre um papel semiqueimado. O gosto desinteressante da morte e do acaso.

"Vinte e três", nunca me interessei por numerologia, aquilo nem sequer fazia sentido. Cansei de buscar respostas onde encontraria apenas mais perguntas, estava acostumada ao silêncio, mas não conseguia entender o que a voz lá no interior dizia. Sentei na cadeira da escrivaninha, pesquisei pela pista de Lara e descobri que não era longe. Poderia desviar e chegar facilmente de bicicleta, mas também não era um lugar amigável, seria frustrante ter que voltar a pé, pior ainda se descalça ou desnuda. Eu precisava descansar… ou dar forma para essa ansiedade catatônica, um produto do espanto prazeroso, talvez alguma maldita filosofia explique isso. Depois de longas horas desenhando, finalmente, paz.

II.

O sol raiava como o sorriso de uma criança feliz em Meradosia, mas entrava sem ser convidado pelas frestas da persiana. Acordar cedo me irritava, principalmente pelas náuseas das poucas horas dormidas e os sintomas insistentes da estafa. O calor da luz sobre meu rosto era ao menos confortável, levantei pensando em dar um jeito na bagunça de última hora, metade de tudo ía para baixo da cama enquanto o resto ia para as gavetas do armário. Fiquei pensando nesse ciclo diário ordinário, e só me dei conta da inevitabilidade quando a bibliotecária me cumprimentou novamente e já era noite outra vez.

À mesa, eu me cerquei de botânicas dessa vez, procurando formas de criar a beleza no bizarro, dar vida monstruosa e felina para um tubérculo, quem sabe presas vampirescas para algum cacto ou suculenta, eles poderiam ao menos voar. Devaneios e logo o meu relógio apita 22 horas. Folheei o caderno e encontrei a anotação: Rua Olavo 23.

Foi inevitável.

A Rua Olavo cruzava o centro da cidade, vinha da costa contornando o Mercado em um formato curvo engraçado, não planejado, mas não incomum. Quase todas as ruas que cruzavam o Centro eram grandes ruas, largas e pavimentadas sobre o sangue e suor de escravizados que fundaram e construíram a cidade, mas nenhum deles tinha seu nome nas placas, ou monumentos, ou livros de história. Quase não acreditei quando comecei a pedalar à altura do número 16000, mas a forma como os números se organizavam era tão tosca quanto a organização daquelas ruas.

Conforme avançava para uma parte da cidade que era nova como um país desconhecido, sentia que as próprias construções estavam falando algo diferente, em uma língua diferente, pois não são mais paredes finas carregadas de tinta de segunda, mas feitas de tijolos artesanais, algumas de pedras, com janelas de ferro ornamentado e vidros martelados e sabe-se o que lá mais. Os muros deram vez para cercados medianos com lanças e trepadeiras, cachorros latiam raivosos e uivavam ao pressentir uma desconhecida pelas bandas e o vazio das ruas era estranhamente reconfortante.

O número 23 estava colado no muro, eram formas grandes e brancas, brevemente atrapalhadas por galhos da trepadeira que aos poucos devorava o número como todo o resto ali. Havia um portão de madeira, ao menos parecia, todo fechado. Eu hesitei em tocar a campainha, mas já estava ali. Eram 22h58 quando olhei no relógio, mas foi um pouco antes, dois minutos não poderiam se prolongar tanto. Quando toquei o botão da caixa embutida no muro sob os números, o portão se abriu e reconheci a voz de Lara me recebendo como se previsse minha chegada. Ela foi gentil, me abraçou forte, senti o cheiro de amoras mais intenso, menos amadeirado, mais doce. A pele dela estava quente e era macia como roupa nova. Ela me apertou amorosamente, ignorando a mala nas minhas costas e quase larguei a bicicleta.

"O que está acontecendo?", perguntei flagrando algumas silhuetas na varanda. Lara sorriu encarando-me, ela sabia que eu não diria "olá" ou "como você está".

"A galera se reúne aqui às quintas de noite", ela disse. Caminhamos para dentro. Não reconheci ninguém da galera, era um grupo misto de deslocados, mas não tão deslocados quanto eu me senti ao entrar no casarão. Lembrei da casa dos Bates de Hitchcock, se fosse colorida, certamente seria como essa. Havia um tapete redondo e gigante na sala, caberiam todos os presentes se nos enrolassem nele, uma forma interessante de se livrar de todos os corpos de uma só vez.

Algumas pessoas me cumprimentaram e trocaram duas ou três frases clichês de quem recém te conhece, mas caga pra você. Alguns minutos passaram e a cerveja esquentou na minha mão. Lara insistiu em pegar outra e logo acompanhamos a galera para o sótão. Eu nunca havia visitado um sótão, imaginava um lugar obscuro, assustador, mas não passa de outro quarto, às vezes mais bagunçado ou não, com bugigangas que alimentam a casa. A galera se reuniu sentada em um círculo. Não havia pentagrama, nem copos com sangue, eu estava pensando nisso enquanto subia as escadas sentindo a mão de Lara segurar a minha e me puxando excitada.

Lena, era como chamavam a garota que começou a discursar. Suas palavras animavam os demais, falavam sobre sensibilidade, aceitação, sobre vidas passadas e conexão com outro tempo e espaço. "Mas que merda…", eu pensei ansiosa. Odeio clichês. Mas Lara não é clichê. Seus olhos brilhavam mais do que os dos demais e quando ela reparou que eu estava ficando tensa, ela segurou minha mão outra vez, um toque de tranquilidade.

Aos poucos, as pessoas entravam no ritual se ajoelhando no centro do círculo. A atmosfera da sala mudava como as ideias de uma criança, mas a inocência parecia ignorar aquele lugar. Enquanto alguns mudavam sua postura fervorosamente, outros desnudos se enrolaram em uma orgia orquestrada. Meu coração disparou por receio, incompreensão, um desconforto que nem mesmo Lara  poderia apaziguar. Eu me levantei abruptamente, mas duas pessoas me seguraram. "Como elas chegaram aqui?", pensei ao me dar conta de que não havia ninguém ali pouco antes.

Lara tentava me acalmar, mas ser tocada daquela maneira me levava ao desespero. As facetas começaram a mudar, tomando adornos demoníacos e monstruosos, assim como as palavras agora pareciam ordens brandas e confusas, tanto quanto meus pensamentos que se embaralhavam tentando compreender aquilo tudo. Eu me batia e gritava pra me libertar, mas me sentia refém, a mercê de qualquer infortúnio. Minhas coisas caíram pelo chão, perdendo-se na pouca luz que vinha de velas e algumas lâmpadas vermelhas. Meu coração estava em ritmo cavalar e eu, ofegante. Lara se aproximou movimentando os lábios como se gritasse e eu não pudesse ouvir, então todos os outros se aproximaram, agora atordoados, disformes e grotescos. Enquanto Lena repetia palavras que eu não entendia, mais pessoas se aproximavam tentando prender meu corpo e então tudo pareceu congelar.

Uma corrente de ar explodiu pela janela, e passou como uma serpente alada que invade e repousa no ambiente, trazendo consigo uma baforada quente e ardida que machuca até mesmo os olhos. O vermelho se desfez em tons púrpura até ficar indistinguível sob uma mescla de quentes e frios. Um rugido ecoou entre as quatro paredes e se dispersou imitando a calmaria do mar após a tempestade, mas uma leve brisa ainda insistia e, em frações de segundo, pude notar como ela tocava delicadamente sobre meu caderno, empurrando as páginas disfarçadamente, desdenhando todos ao meu redor que estavam como estátuas esculpidas com expressões de fúria, espanto, horror e abandono. Conforme as páginas passavam, a tinta parecia escapar, encantada por um flautista onisciente e onipresente, “tal qual o destino” parece piegas, mas ali eu estava contemplando o presságio do inevitável.

Então a tinta tomou forma e se levantou como corpos que jaziam no chão. As páginas ainda passavam e a tinta se espalhava pelos cantos criando curvas familiares, formas belas e caóticas. Primeiro, observei o dragão-sátiro se arrastando enquanto os ossos pareciam se criar aos poucos preenchendo o corpo parrudo e animalesco. Do outro lado, um grunhido rasgado de um felino selvagem se destacou dos sons esquisitos, possivelmente pela dor do seu corpo de serpente escamada que crescia como um caule em velocidade acelerada.

Enquanto tudo acontecia, além do meu controle, eu me senti extasiada, tomada por um torpor abstrato e esmagado pela impotência. Ao mesmo tempo, enojada ao ver meus pesadelos criando vida e no fundo da minha mente uma frase se repetia: “Como são inconstantes os seus sentimentos!”, mas ao contrário de Victor, não me excitava gritar que ele está vivo, pois, em meu âmago, sentia apenas ânsia e desespero. Logo, contemplei o terror, enquanto minha angústia, medo, raiva, agressividade, arrogância, presunção, dúvida, covardia e outros sentimentos indescritíveis imolavam aqueles cultistas.

Elas estão vivas.