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Julho 05, 2021

massala

contos | 18 min de leitura 📖

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Massala é um conto ambientado em futuro distópico, onde uma cidade é palco de um ataque kaiju e de uma investigação criminal extramamente suspeita. Criado com o incentivo de um desafio no Twitter e também dedicado ao apoiadores mensais.

Um agradecimento especial para toda a galera que deu like no tweet e tornou essa publicação realidade e também as Apoiadoras. <3

Sugestão para acompanhar a leitura:



Massala

I.

Dizem que o diabo está nos detalhes. 

A porta se abriu, jogando, contra meu rosto, uma corrente morna de ar acompanhada de um cheiro nauseante e profundo. Cheiro de madeira adormecida e enrugada por um temporal, havia dias exposta apenas à sombra, com alguns  traços de vida surgindo dos veios mórbidos e contraídos, o grito desesperado da resistência. A luz batia na diagonal através da veneziana da grande e única janela do cômodo central. A janela estava meio aberta, com algumas partes quebradas. Era de bambu com detalhes em metal, diferente das existentes na vizinhança que usava couro ou tecido sintético por dentro e simplórias grades com soldas brutas por fora, prisioneiros da própria liberdade. A parte não coberta exibia uma rachadura incomum, como polímero derretido por maçarico, apenas sem o cheiro de plástico no ambiente. Sem os tons escurecidos, na verdade; não soube reconhecer se estava assim devido ao que causara aquilo ou simplesmente por se tratar de um vidro moldado. Curiosidades à parte, o intrigante era pensar que sequer uma .50 atravessaria a janela, enquanto o que quer que tenha passado ali parecia ter passado como lâmina quente na manteiga.

O piso laminado tinha riscos de felino, não de um gato doméstico, mas de uma fera arrastada à força pelos cantos, depois sob os balcões e aparentemente em algumas partes da parede e do teto. Se alguém o tivesse feito, caprichou ao destruir tudo o que podia ser quebrado, concentrando no chão incontáveis e indistinguíveis cacos que explodiam sob meus pés. Era um breve corredor da porta até estar propriamente na sala, o pequeno estúdio se expandia por alguns metros para cada direção, sendo provavelmente aquele o maior cômodo e restando apenas um quarto para uma cama estreita e uma cômoda, e um banheiro individual. O papel de parede rasgado introduziu a cena bizarra, com o sofá virado no chão e uma mesa de centro partida ao meio. A luz iluminava bem, destacando os tons de mármore e detalhes em madeira e marfim, provavelmente uma terceira ou quarta geração, tanto da madeira, quanto do marfim. Tentei me lembrar se ainda vendiam aquele tipo de material na cidade, mas, com a proibição das Duplicatas, o máximo que eu encontraria seriam chapas impressas e pintadas em estufas.

O lado oculto da sala tinha uma atmosfera gótica, escondia papéis rasgados por todos os cantos, ofuscados na penumbra e esperando por serem descobertos, como um quebra-cabeças. Mas, ainda sob a luz, revelando-se além do acaso, uma poça misteriosa descansava espalhada por uma parte do espaço, pigmentada em tons confusos de vermelho escarlate, púrpura e preto, como se uma  máquina e um humano sangrassem juntos até a morte.

Magda chamou minha atenção. Sua voz rouca entregava os danos do tabagismo depois de anos, mas também acrescentava um charme à sua beleza oriental. Ela sorriu quando me virei, saindo do transe de quando observava o caos no estúdio. Ela acenou me chamando com um gesto. Magda era metódica, costumava vagar pelas cenas apontando probabilidades para os eventos que desconhecíamos Era como se a morte ou a vida planejasse algo, indo de um lado para o outro com seu sobretudo esvoaçante e um coque relaxado. Ela tinha seu charme.

“Quantos metros você acha que tem daqui até o teto?”, ela perguntou apertando os olhos para mim. Magda tinha esse hábito, pequenos detalhes em suas expressões que entregavam palavras que ela não se dava ao trabalho de dizer. Naquele momento, a pergunta era retórica, ela não queria um número como resposta, seria ingenuidade da minha parte falar que o pé-direito teria no mínimo três metros e meio, talvez um quarto. De qualquer forma, Magda já sabia; seu passado militar e tantos anos dentro de serviços privados em corporações daquele mundo avesso lhe proporcionaram mais do que um físico predisposto a encarar qualquer coisa, mas também um olhar aguçado e a inteligência de um tigre. Ela caminhou de um lado para o outro e parou observando o horizonte pela janela.

“Sem corpos. Uma queda faria mais estragos, está tudo tão concentrado… A pessoa tinha pelo menos um braço mecânico ou a coisa… Não sei”, respondi tentando imaginar o que teria arrastado a vítima por tantos cantos diferentes. Em outra época, em outro lugar, poderia dizer que um urso estraçalhou algum desgraçado como um cachorro com uma bola de tecido, mas aquilo era diferente. “A porta não estava arrombada, os vizinhos disseram terem ouvido a confusão pouco antes de tudo começar a quebrar contra o chão”, falei em um tom baixo, como que para mim mesmo.

“O que quer que tenha feito isso, não invadiu, era conhecido. E quem quer que estivesse aqui, não esperava por isso. Mas a questão é… O sangue é da vítima?”, Magda me olhou com um meio sorriso no rosto. Ela gostava de suspense, assim como era um tanto quanto fria com as palavras e intenções em momentos não oportunos.

A equipe forense chegou se instalando rapidamente. Estávamos em um bairro de classe média em que coisas extraordinárias não costumam acontecer. Magda arqueou uma sobrancelha e caminhou para a sacada, tirou um estojo metálico com seus cigarros favoritos e acendeu um. Laura, encarregada pela investigação forense, pediu para que liberássemos a área, enquanto os especialistas e dróides faziam varreduras cirúrgicas atrás de vestígios para identificar a quem pertenciam aqueles fluidos e simular o que teria acontecido. Quando, parado na porta entre a sala e o quarto, notei um cheiro que pareceu vir do cômodo escuro, tive uma impressão estranha, como um déjà vu, a sensação de um glitch, como se minha mente se deslocasse para um outro momento, mas no mesmo espaço. Um balcão logo à minha frente, com tons escuros, possuía algumas marcas em sua superfície que criavam linhas desajustadas que se cruzavam em alguns pontos propositalmente espaçados. “Poderia?”, pensei. No caixilho da porta também havia marcas, mais sutis, mas que seguiam a mesma dança estranha. Passei o dedo sobre as linhas marcadas e tive a sensação de que tudo aquilo era tão familiar quanto o cheiro agridoce do quarto.

Entrei no cômodo evitando pisar em qualquer uma das coisas que estivessem pelo chão. Poderia arriscar dizer que algo havia atormentado aquele lugar ou que quem vivia ali não vinha tendo bons momentos de sobriedade. Havia mantas térmicas amassadas sobre o colchão, que parecia ficar sobre uma baixa estrutura metálica para se igualar ao degrau que dava para outra janela. Algumas garrafas vazias estavam sob o colchão parcialmente expostas, como se me espionassem das sombras. A parede acinzentada possuía gavetas e portas embutidas, sem maçanetas. Aproximei-me de uma delas, mais baixa, ao lado da cama; diferente das outras, suas bordas brilhavam pulsando disfarçadamente em variações de vermelho e azul. Antes de tocar na porta, flagrei projéteis intactos de pistola e cartuchos explosivos cromados, do tipo feito de kevlar e usados em bestas táticas e carabinas. Havia também, logo na entrada para o banheiro, embalagens de graxa e cápsulas kdeoide. Uma alma solitária e violenta repousava naquele lugar; a considerar todos aqueles elementos, não seria do tipo com quem alguém gostaria de arrumar confusão. Por um momento, pensei sobre o fato de não ter visto nenhuma decoração que se destacasse: não havia flores nem quadros com paisagens, apenas pequenas esculturas de porcelana e outros materiais sem cores, tal como as paredes neutras e os móveis de tons escuros. Se não fosse a bagunça do pandemônio que acontecera ali, aquele devia ser um local impecável.

Quando pressionei o dedo contra a lateral da porta, toda a superfície que toquei afundou como se eu empurrasse uma malha elástica, reagindo ao calor do meu corpo. Senti uma superfície ondulada quando não conseguia mais empurrar e meu dedo encaixou como se fosse em uma luva. A porta pulsou toda em amarelo e voltou à cor original, então um breve clique a destravou. Senti um calafrio e espiei sobre os ombros; aquela velha paranoia, mas não havia ninguém. Puxei a porta e lá dentro havia um cartão. Era feito de aço ou algum material metálico, tinha a cor grafite e alguns dentes dourados em uma das pontas. Puxei o cartão para perto e o virei. Do outro lado havia uma marcação feita com um pincél branco: “MSSL-ORL-26-AZM-27”.

“MSSL”, cochichei para mim mesmo. Respirei fundo e senti meu coração acelerando. “MSSL”, repeti, e algo óbvio me ocorreu.

“Massala! Venha ver isso!”, a voz de Magda me chamou e me tirou da viagem pelo abismo da incompreensão. 

“Que porra é essa?”, cochichei novamente. “Estou indo!”, anunciei alto em seguida. Empurrei a porta discretamente e enfiei o cartão no bolso. Meus passos até a sacada foram rígidos e eu sabia que minha expressão não era das mais confiáveis naquele momento. Que diabos era KJK ou SP e aquelas iniciais era tudo o que eu conseguia pensar.

Saindo do quarto, trombei com um dos dróides. Nem Laura nem ninguém na sala notou, mas a I.A me encarou. Seu exoesqueleto era coberto por uma malha sintética azulada. O rosto se assemelhava ao humano, mas não tinha expressões. O olhar profundo era tão falso quanto todo o resto. Ele se virou para a porta e apenas continuou. Atravessei a sala, ainda deslocado.

“Qual dos desgraçados você acha que conseguiu escapar? Aposto minha Magnum contra aquela baioneta rara que você tem na parede da sua casa!”, disse Magda apontando para o prédio da frente. Eu não havia notado, mas a construção não estava a mais do que doze metros de distância, era ligeiramente mais baixa do que o local onde estávamos e havia marcas no telhado, como se algo tivesse se chocado sobre o parapeito e sido arrastado pelo chão. Uma pessoa não conseguiria dar um salto daqueles, mas um andróide ou outra máquina... provavelmente.

No horizonte o sol se punha. Senti um sabor amargo nos lábios. A sirene alertou o toque de emergência e as pessoas logo começaram a agilizar seus passos para os pontos de segurança e suas casas.

“Que merda”, disse Magda. “Peça para a Laura enviar todos os dados pro departamento, vou solicitar para que uma equipe fique lá para vermos se descobrimos alguma coisa”.Ela se aproximou de mim, deu uma longa tragada no cigarro e soprou para o lado. “Eu sei que você está exausto, ontem foi barra pesada, nós sabemos que a situação está um pouco crítica. Vá pra casa e descanse, sabe, eu vou acompanhar o que acontece fora da redoma e te aviso se tiver algum problema!”. Eu apenas concordei.

Quando saí do prédio, ouvi os trovões e vi os relâmpagos rasgando os céus carregados além da redoma. Lá no alto, a película da redoma se abria para criar uma mistura homogênea do clima natural e do simulado. Logo, a chuva despencou como se saindo de um chuveiro colossal. As ruas já estavam quase vazias, pelo menos naquela área, mas definitivamente ainda havia praças comerciais fervendo na Cidade Baixa e era lá que eu poderia encontrar respostas. Os dróides passaram por mim carregando as maletas para as viaturas. Me apressei até meu carro e acelerei ansioso para fora do Centro. Alguns minutos depois, já mergulhava na baixada. Os quiosques bombavam nas esquinas com todo o tipo de gente circulando. A cada esquina, laranjas se ocultavam sob os hologramas e só se revelavam para fazer a venda quando algum playboy estacionava no meio fio, sedentos por uma nova dose de alucinógenos e estimulantes. As lojas pareciam concentrar incontáveis almas perdidas, não por serem pessoas de má fé, mas apenas porque não tinham para onde ir. Enquanto isso, os telões da praça acumulavam olhares que acompanhavam o embate fora da redoma. 

Estacionei. Do outro lado da rua pude ver, no telão, uma sombra gigante se erguendo na costa, enquanto no anúncio do noticiário um alerta que se repetia em todas as fachadas nacionais piscava em vermelho e branco: “Ataque iminente! Alerta nível 8! Toque de recolher em vigor!”

Meus olhos percorreram a área: eu sabia que estava no lugar certo. Em um prédio antigo havia uma pontinha ao lado de uma casa de banho, o vapor quase escondia a entrada, mas não era difícil de se perder. Subi um lance de escadas até o quarto andar, passando sorrateiro pela varanda dos moradores que acompanhavam o caos da costa nos telões pela janela. Parei em frente a uma porta dupla, com uma frente de grade metálica verde musgo e outra chapa sólida de polímero. Usei um canivete para michar a grade, fácil. Saquei minha pistola puxando o cão e coloquei contra o olho mágico da porta. Bati três vezes.

Uma voz aguda ecoou do lado de dentro, irreconhecível; havia muito barulho na praça e a chuva não colaborava. Não tinha trinco para o lado de fora, apenas um painel de leitura de DNA; sobre ele, uma câmera piscava disfarçada. Fiz questão de ficar de costas para ela. Quando a primeira fresta se abriu, deslizei a ponta da pistola até a cabeça de uma ruiva da minha altura: seus lábios mexeram como se segurassem um grito de desespero. Forcei o dedo anelar na lateral do cabo trocando a munição de fogo por um projétil de atordoamento e rapidamente disparei contra o estômago dela. A ruiva apenas gemeu e caiu para trás, empurrei a porta e segurei o corpo antes que tocasse o chão.

“Amor! Quem é?”, gritou uma voz dura do outro lado do apartamento. Estava escuro, iluminado apenas pelas cores dos painéis da rua. Encostei a porta com cuidado e avancei pelo corredor. Do outro lado, uma mulher digitava furiosamente, sentada seminua em frente a meia dúzia de telas. “Amor! Traz um energético, por favor!”, ela gritou. “Amor!”, ela deu um pequeno impulso para trás, a cadeira deslizou e ela girou, dando de cara com a ponta da minha pistola.

“Massala!”, ela exclamou rangendo os dentes.

“Jon…”, eu devia ter me preparado. Ela chutou a pistola da minha mão para cima em uma velocidade sobre-humana, a outra perna acertou meu joelho, meu corpo despencou. Me segurei contra o chão e agarrei o chute que veio em seguida. A pistola caiu no outro canto. Ela pisou contra meu rosto, senti as camadas metálicas da sola rasgando minha pele e a pressão parecia que ia explodir meu maxilar. Com muito esforço, a puxei para baixo e girei sobre seu corpo, senti alguns golpes afiados explodirem contra minha costela e cuspi sangue. Ela se levantou em um pulo em direção a pistola. Levantei o mais rápido que pude e me joguei contra ela, abraçando a sua cintura.

A parede explodiu com o choque.

“Eiiiii!”, gritei erguendo as mãos para cima tentando fazê-la parar, mas ela me arremessou de volta pelo buraco da parede com os dois pés. Meu corpo rolou por um metro e fiquei atordoado ao bater com a cabeça contra a perna fixa da mesa. Pisquei forte e, quando me dei conta, ela estava com a pistola apontada para o meu rosto. “Na cara não!”, soltei entre dentes.

Jonesy puxou o gatilho, mas a pistola não responderia a sua digital. Exibi um sorriso frouxo, ela soltou o pente e, quando ele caiu, o chutou contra meu rosto. Apaguei.

II.

Acordei sentindo dores pelo corpo, minha língua parecia inchada e certamente eu poderia dizer que havia sido atropelado por um ônibus. Estava na outra sala, além da parede quebrada. Em frente aos monitores, Jonesy corria os olhos de um lado para o outro, enquanto empurrava o lábio inferior pressionando-o levemente contra os dentes com a ponta dos dedos. Ela fazia isso. Sua silhueta magra me deu um breve aperto no peito. Ela vestia roupa de baixo e um top preto, a pele escura contrastava com o brilho metálico de algumas partes de seu corpo quando a luz dos monitores refletiam sobre a superfície. Os cachos longos estavam presos em um coque no alto sobre a cabeça, com algumas mechas caídas como uma cascata sobre os olhos, as cicatrizes e os implantes. A ruiva entrou na sala, segurando uma bolsa d’água contra o pescoço todo coberto por tatuagens e alguns vermelhos, efeito colateral do projétil, e na outra mão uma matriz de criptografia.

“Já tive… Melhores recepções, Jon”, falei com dificuldade.

Jonesy levantou, acariciou a ruiva com carinho agradecendo pela matriz e pediu educadamente que ela buscasse uma garrafa com água, “Por favor, Jes!”, então caminhou até mim. “Eu devia arrancar a sua traquéia e jogar seu corpo na praça”, ela disse calmamente.

“Devia”, dei uma pausa tentando não me afogar com o sangue que escorria da minha boca pela camisa. “Mas você é meu melhor amigo, eu sei que não faria.”

Jonesy riu. “Você me deve duas agora, Massala. Ou melhor, três, se eu te contar o que é a merda que você carregava no bolso. Quatro se eu fizer o que você vai me pedir. E cinco se acontecer o que estou pensando que pode acontecer.”

“Do que você está falando?”, perguntei confuso.

“O cartão, seu idiota”, ela pegou a garrafa com água da ruiva e me ajudou a beber. Só então notei que estava amarrado.

“Mas que porr…”, praguejei. Jonesy sorriu e então estourou as amarras com a mão livre. Ela se afastou voltando para a cadeira e fixando os olhos nos monitores, a ruiva a acompanhou e começou a organizar alguns cabos nas CPUs e nas placas espalhadas pelo chão e na parede. Eu levantei conforme conseguia, caminhei até próximo de Jonesy e tentei decifrar tudo o que estava acontecendo. Nos monitores, várias janelas se abriam expondo documentos com incontáveis linhas grafadas em preto, além de outros corrompidos e listas imensas com números e nomes.

“Como você conseguiu isso, Massala?”, ela perguntou agressiva, e eu gaguejei tentando explicar. “Como?”, ela insistiu. Contei o que havia acontecido. Apesar da relação incomum que tínhamos, desde que eu conseguia me recordar Jon havia sido meu único e verdadeiro amigo, talvez até mais do que isso, eu não conseguiria mentir nem se quisesse.

Jonesy abriu outro terminal em uma das telas, hackeou um sistema de segurança público e abriu acesso às câmeras locais. Em uma delas, com a data de duas noites anteriores, vi o que parecia eu mesmo encontrando uma figura desconhecida em um dos metros da baixada. O vídeo era um pouco confuso, pois havia inúmeros passantes; ao contrário de outros locais, o fluxo naquela região é constante.

“Mas…”, eu não compreendia, de fato parecia ser eu no vídeo, mas eu não me recordava daquilo. Busquei uma razão para o que estava vendo, mas naquela noite eu estava no escritório, eu tinha certeza, as câmeras do departamento poderiam provar, eu achava.

“Aquela é Rawala Maqui, está entendendo Massala? A Líder das Valquírias! O que diabos você estava fazendo?”. Minha respiração ficou ofegante, descansei a mão sobre o encosto da cadeira de Jon e apertei o mais forte que consegui quando senti que estava perdendo a consciência. Minhas pernas tremeram e só consegui me manter em pé, pois a ruiva se aproximou rápido me abraçando pelas costas enquanto dizia: “Eles limparam ele, J, eles limparam ele!”.

Uma dor se espalhou pelo meu abdômen e o ácido do meu estômago subiu pela garganta, vomitei enquanto alguns flashes explodiram diante dos meus olhos com fragmentos de eventos desconexos, como se eu presenciasse cenas familiares, mas fora do meu corpo. 

“Segure ele Jes!”, disse Jonesy. Ela correu para outro cômodo e voltou com uma maleta, tirou uma seringa de disparo e inseriu um tubo com líquido vermelho no compartimento. Jes se agachou e me deixou sobre seu colo, enquanto deslizava as mãos gentilmente pelas laterais do meu rosto e me incentivava a ficar calmo. Jonesy rasgou minhas camisas e o colete com um bisturi e cravou a seringa no meu peito. Naquele momento meu corpo todo parecia entrar em um estado inerte e quase instantaneamente passou para um formigamento geral, até que tudo se acalmou. O mal estar aos poucos foi passando e eu sentia meu coração diminuindo seu ritmo, assim como o calor voltando ao meu corpo.

Alguns minutos depois, tudo parecia se encaixar. Jes ainda cuidava de mim enquanto Jonesy investigava freneticamente o conteúdo aparente do cartão.

“Eu estava infiltrado”, falei o mais alto que pude ainda sem fôlego, temendo que minha voz não fosse sair. “Depois dos atentados na Orla e o escândalo com a Azumi, me infiltraram para descobrir quando seria o próximo ataque das Valquírias. Mas nunca houve um ataque!”, suspirei.

Jon saiu da sala e voltou em seguida. “Pode deixar”, Jes se afastou com cuidado e Jon assumiu seu lugar. Com sua ajuda, tomei um longo gole da garrafa. “A Azumi queria distrair a mídia, Massala, o ataque na Orla não foi causada pelas Valquírias, a ordem para você agir veio de cima, eles iam te derrubar, assim como todos os outros que não estavam na folha de pagamento”, Jon me encarou com empatia, como se entendesse o sentimento azedo de traição que lentamente transbordava no meu âmago. “Todos os cretinos do departamento estão listados nesse cartão, assim como transações de propina e os esquemas que iam encobrir o que aconteceu na Orla.”

“Quê? O que você está dizendo?”

“A Orla possibilitou que a Azumi obtivesse a patente de todos os dados colhidos do Azjiro, quando aquele kaiju atacou a redoma, foi a primeira vez que conseguiram neutralizar um cadáver viável daquelas criaturas, em quase 100 anos desse inferno”, as palavras de Jon entraram pelos meus ouvidos como o presságio de um desastre. Minhas mãos tremiam enquanto minha mente me arrastava como o próprio diabo para lembranças que estavam tão suprimidas na escuridão que eu já nem mesmo reconhecia aquele tipo de dor. A Orla foi a primeira cooperação entre multinacionais voltada para a criação da redoma, que há quase um século preservava as cidades contras aquelas aberrações que vinham do norte trazendo a morte por onde quer que passassem, enquanto a Azumi era a megacorporação que se destacou nos avanços tecnológicos para a cura das doenças causadas pela radioatividade dos kaijus.

Duas gigantes dominando o mercado e o mundo. Enquanto nós vivemos como efeito colateral. E foi isso que me disseram, efeito colateral, quando um evento desastroso e aparentemente acidental transformou um quinto de uma cidade toda em um inferno flamejante, ceifando incontáveis almas inocentes e destruindo famílias, como a minha. Tudo fazia sentido. Menos o buraco que se afogava em lágrimas dentro do meu peito. Com a dor, vieram breves fragmentos das risadas da minha filha, tal como o toque quente e reconfortante do único homem que amei. Minha unhas se partiram contra o chão, mas não tão profundas quanto o que eu tomava como realidade.

“Jonesy”, exclamou Jes, e uma luz laranja acendeu sobre a matriz.

“Porra!”, Jonesy se levantou de imediato, Jes puxou um machete de baixo da mesa e começou a cortar os cabos e destruir as centrais. Do outro lado da parede destruída, Jon puxava furiosa a lâmina do piso, revelando uma espécie de alçapão. “Vamos, Massala, levante logo! Não temos muito tempo!”. Me esforcei para levantar; depois que Jes destruiu os monitores, ela me ajudou. Jonesy empurrou um caixote pelo alçapão e pulou junto. Quando passei com Jes pelo buraco, caímos em um carrinho como uma jaula, suspenso em um trilho. Jon puxou a porta do alçapão e, antes de fechá-la, ouvi incontáveis disparados das viaturas aéreas peneirando todo o apartamento. O carrinho se deslocou pelo trilho por alguns metros, atravessando por uma alta passarela de um prédio para outro logo atrás.

“Desgraçados!”, exclamou Jon. “Eu fiz a cópia do cartão, não temos muito tempo agora, seja lá o que for essa merda toda, nós estamos até o pescoço”, ela tirou uma chave do bolso, enquanto caminhávamos empurrando o caixote até uma caminhonete. “Eu vou enviar a cópia pra alguns contatos e pra uma ponte com Maqui! Nós vamos pra outro apartamento seguro, lá vamos conseguir pensar direito no que fazer em seguida! Jes, você precisa sair de cena!”, Jonesy comandava como se conseguisse prever o que poderia dar certo ou não. Não era à toa que ela havia se tornado a maior hacker da contemporaneidade e estava em fuga havia tantos anos que possivelmente as autoridades já tivessem desistido de encontrá-la.

O caminho que fizemos era como um saguão vazio, todo escuro, l iluminado apenas pelo luar que passava pelas claraboias; era um edifício abandonado. Empurramos o caixote para dentro da caminhonete e saímos por uma rua vazia, deixando para trás o tumulto que havia tomado toda a praça com o tiroteio.

Jes ficou no Centro, ela iria se esconder com alguns amigos por alguns dias, enquanto eu e Jon seguimos para a Alameda até o apartamento. Apesar de não falar nada, ela parecia apreensiva. No caminho me entregou algumas barras de proteína, dextaurina e energéticos; a mistura clareou minha lucidez como uma injeção de adrenalina, transformando até mesmo as dores em torpor. A chuva ainda castigava a cidade e de longe ouvíamos o confronto que acontecia na baía, fora da redoma.

“Efeito colateral”, cochichei. Jonesy me encarou e pegou minha mão apertando forte.

“Nós vamos acabar com eles, nós vamos!”, suas palavras eram reconfortantes, mas não preencheriam o vazio. De dentro daquele carro gelado eu via as gotas da chuva baterem contra o vidro de maneira tão desesperada quanto as lembranças dos meus gritos de luto em incontáveis madrugadas regadas por drogas e violência. Um buraco cavado por quase um ano e que agora parecia se abrir.

O estacionamento estava vazio. Jonesy puxou um conjunto de roupas do caixote e se vestiu rapidamente. Saímos, garantindo que ninguém havia nos seguido ou nos veria por lá. No elevador pequeno, estávamos apenas nós dois. O 43º andar parecia distante e eu senti que a fobia estava incomodando Jon. Ela mordeu os lábios, então notei o quão pálida ela estava sob a lâmpada branca que piscava inconstante, apagando estranhamente em momentos aleatórios. Jonesy me encarou e se aproximou, me abraçou, encostando a cabeça no meu ombro. O calor dela me lembrava a infância, nossa infância, nossa adolescência, quando compartilhávamos momentos de inocência e carinho ou mesmo as dores de aprender a sobreviver em um orfanato, sendo rejeitados desde o momento em que nascemos. Meu melhor amigo.

A porta do elevador dava para uma área minúscula. O prédio alto possuía um apartamento por andar. Jonesy estendeu a mão para que eu fosse na frente, curiosamente aquele momento tinha um ar dramático, as bolsas de cansaço sob meus olhos ficaram dormentes e o corredor parecia se estender além do que parecia real, como se a porta fugisse de mim. Senti a temperatura caindo, um embrulho no estômago, uma sensação anormal. Encarei Jon enquanto tirava a chave do bolso, instintivamente encaixando-a na trava. A porta destravou e abriu, de imediato tudo pareceu congelar e meus lábios não se mexeram quando senti vontade de gritar.

O corredor estreito levava para um estúdio com pé-direito alto. A janela enorme e vistosa estava fechada pela metade por uma persiana, enquanto a lua inundava o cômodo que não era tão grande quanto parecia. Eu travei. Olhei para trás e Jonesy sorriu para mim, então sobre os ombros dela notei um vulto se descolar da parede, se desfazendo da camuflagem ordinária que não deveria ter fugido do meu instinto. Um corpo mecânico e imenso avançou sobre nós, abracei Jon e virei as costas para a criatura que disparou um golpe poderoso contra minhas costas. Nossos corpos foram arremessados por metros e Jonesy só conseguiu evitar que alcançássemos a janela depois de destruir as paredes, rasgando-as com as mãos. A pele artificial se estraçalhou junto com o papel de parede. Eu tossi sangue. A criatura atacou novamente e Jonesy me empurrou para trás, meu corpo se chocou contra uma mesa de centro, partindo-a ao meio. Jonesy deitou de costas para o chão e como em um contrapeso usou o impulso da criatura e a chutou contra o teto. O corpo mecânico se chocou forte e se agarrou, cravando lâminas contra o cimento. Outros dois braços pareceram se desenrolar do corpo e então puxaram Jonesy batendo-a de um lado ao outro, enquanto ela se chocava contra louças e estatuetas que descansavam sobre os balcões e contra a luminária, que se despedaçou no chão.

“Tem um rifle... No banheiro!”, Jonesy gritou enquanto travava o combate desesperador. Ainda zonzo, me arrastei pelo cômodo até o quarto, me escorei no armário até o banheiro. Lá, além do rifle descansando ao chão, havia diversas munições sobre uma prateleira ao lado da porta, peguei tudo o que consegui, então ouvi o grito de Jonesy. Tirei o celular do bolso rapidamente, disquei para Magda e joguei o celular em um canto, tateei a parede e no quarto escuro e um pouco acima da cama, encontrei algumas portas embutidas, abri uma delas e escondi o cartão ao fundo atrás de uma tampa, quase imperceptível. Desci da cama quase tropeçando em algumas garrafas vazias que rolaram para baixo do colchão, me encostei contra a porta do quarto e dei dois disparos contra a máquina. O projétil explosivo abriu um buraco na parte superior do corpo jogando graxa escura no chão, mas, antes de cair, a criatura cravou a garra no ombro de Jonesy e puxou, abrindo um rasgo profundo na carne e perfurando a prótese.

“Não!”, corri para ajudá-la e, quando me aproximei, a criatura me agarrou pelo pescoço, apertando tão forte que eu podia sentir meu maxilar rachando. Jonesy se levantou e foi arremessada contra a parede do corredor. A criatura me golpeou algumas vezes rasgando meu estômago e meu peito, eu já não sentia dor, nem sentia medo. Observei no fundo daqueles olhos artificiais feitos de metal, circuitos e tecido poliadaptativo e em um vão da estrutura monstruosa, acima da crista, uma inscrição: “Prot. EXO51 - Dep. de Segurança Federal - ISO-y455”.

A consciência estava me deixando quando Jonesy disparou contra a criatura, o projétil abriu um buraco perto do core, fazendo com que o fluido interno jorrasse por todos os lados. A criatura cambaleou para frente, largando-me sobre uma poça do meu sangue. O segundo disparo a incendiou, o core inflamou e ela se chocou fortemente contra a janela, quebrando-a. Vi Jonesy se aproximar enquanto observava a aberração colapsando, mas, antes da combustão explodir a maldita máquina, uma lâmina voou atravessando o pescoço de Jon. Então a criatura explodiu, arremessando seus pedaços pela sacada.

Eu já não tinha forças para gritar, chorar ou reagir. Apenas esperei pela morte.

“Ele vai colapsar!”, “Interromper a simulação!”, “Já temos a informação que precisamos, senhora!”, “Vamos, administrem a adrenalina!”, “Deixe que morra…”, vozes ecoavam em uma sala branca. Ali, seis pessoas estavam em volta de uma maca. As paredes impecáveis e claustrofóbicas eram fechadas, com exceção de uma que continha um vidro retangular fino, mas tão longo quanto toda a extensão. Nada se via para o outro lado, mas quem quer que estivesse do outro lado assistia ao evento com afinco. Quatro das pessoas vestiam trajes cirúrgicos, lutando para salvar o corpo quase morto que se contorcia em uma convulsão sobre a maca. As duas restantes trajavam um uniforme tático, azul petróleo, também óculos escuros e falavam em dispositivos holográficos com as pessoas que supostamente estariam do outro lado do vidro. Uma das cirurgiãs carregou a seringa com epinefrina, mas, antes de aplicá-la, um tiro atravessou seu peito e ela caiu morta. Os outros três cirurgiões foram ameaçados, encurralados contra um canto.

“Mate-os!”, soou uma voz pelo dispositivo. Em seguida, o sinal vital inerte do corpo que não se debatia mais sobre a maca. Um homem uniformizado pôs o dedo no gatilho, mas não teve chance de puxar. A sala do outro lado do vidro explodiu e todos que estavam lá dentro se transformaram em lembranças amargas. A porta explodiu em seguida e um grupo de pessoas entraram e executaram os homens que ameaçavam os cirurgiões. Um do grupo aplicou a adrenalina no corpo sobre a maca, que após alguns momentos reagiu.

Massala suspirou, gritou e tossiu. Jonesy se aproximou abraçando o amigo o mais forte que conseguiu. O comunicador alertou o grupo que a segurança havia sido reforçada e eles teriam que sair imediatamente. Pelo corredor de destruição que o grupo causou para chegar até a sala, era possível ouvir a sirene alertando um novo ataque à redoma.

“Jone…”, Massala não tinha forças, mas ainda assim se esforçou. “Eu tentei enganá-los”, completou.

“Não, você conseguiu. Eles vasculharam o apartamento, mas não encontraram nada, o cofre não era real, não é?”, Massala sorriu. “Nós recuperamos o cartão, nós recuperamos!”

Massala exibiu um sorriso de canto e segurou firmemente a mão de Jonesy.

“Agora é a minha vez.”