Abril, 2021

deixa eu te falar que #6 💬 - a ignorância e a pílula azul 💊 – de volta a caverna e a traição de cypher em matrix.


deixa eu te falar que | 23 min de leitura 📖

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Deixa eu te falar que de muitas formas nos sentimos ansiosos, deprimidos e depressivos quando nos recolhemos em nossos pensamentos refletindo sobre o agora, o mundo, o que foi o ontem e será o amanhã. Costumamos sempre nos pegar questionando “e se fosse diferente”, “e se tivesse acontecido assim”, “e se eu estivesse em tal lugar”, esse pensamento “e se”, já nos é familiar, pois falamos também sobre ele em nosso terceiro episódio (tempo ao tempo — a ansiedade ordinário de benjamin button). O ponto é, que nós mergulhamos em questões como essa pois temos o conhecimento e entendimento das adversidades de escolhas pessoais, coletivas, e de certo modo, históricas globais para saber que as coisas são como são por uma cadeia infinita de eventos, que vem lá de trás, quando o homo ainda não era sapien. O evidente entendimento da realidade, muitas vezes é o que nos deprime, pois como humanos pensantes e sentimentais que somos, sempre iremos questionar aspectos da verdade por mais que estejam tão distantes da nossa realidade local (vamos chamar assim as coisas que cada um conhece durante a vida), que independente do que façamos, parece que, nada vai fazer diferença.


Saindo da escala global, isso se aplica também a uma percepção do quanto o conhecimento pode ser danoso. Espera! Não, não é uma desculpa para largar a escola. Veja, há um clichê interessante que diz: “Eu era feliz e não sabia”, mas será que eu era feliz porque não sabia ou não sabia o por que era feliz? A filosofia nunca me atraiu, mas é engraçado pensar que filosofamos o tempo todo, estou filosofando agora, não como Nietzsche, mas estou… e por falar em Nietzsche, que tal observarmos isso sobre a causa e efeito, e reafirmarmos o pensamento partindo do ponto de vista de Nietzsche. Eu era feliz porque não sabia.

Nós somos felizes na ignorância, não por ser tolos (não gosto muito da palavra burro nesse contexto), nós somos felizes na ignorância pois apenas o que está na nossa frente faz sentido e importa, digo, literalmente na nossa frente. Imagine-se acordando em uma casa de férias, tipo aquelas gringas de veraneio, de cara pra um laguinho super cool com pedrinhas e aquelas árvores que parecem aquele maldito chocolate de guarda-chuva feito com banha que comíamos nos anos 90, e você acorda com o calor do sol matinal tocando seu rosto e quando abre os olhos, flagra uma montanha nevada, você se sente feliz… calma, vamos ser mais simples. Você acordou descansada e com fome, mas sentindo cheiro de pão quentinho… massa! Nesse momento, você é ignorante, mas não estou usando essa palavra no sentido pejorativo, a ignorância é pelo fato de que nesse momento nada importa além do que você está vivendo imediatamente, a sensação de descanso, a ansiedade de comer um café da manhã irado, e toda a desgraça que está rolando no mundo… bom, foda-se.


O conhecimento é algo que nos deprime, pois temos consciência dos males do mundo e o que nos fere realmente é ter consciência de que não podemos fazer nada para impedir ou remediar, que está além do nosso controle ou que aquilo já te feriu tanto que você não quer saber mais, chega.

Nietzsche coloca isso melhor em palavras:

Os homens fogem menos da mentira do que do prejuízo provocado por uma mentira. Fundamentalmente, não detestam tanto as ilusões, mas as consequências deploráveis e nefastas de certos tipos de ilusão. É apenas nesse sentido restrito que o homem quer a verdade. Deseja os resultados favoráveis da verdade, aqueles que conservam a vida; mas é indiferente diante do conhecimento puro e sem consequência, e é mesmo hostil para com as verdades que podem ser prejudiciais e destrutivas (NIETZSCHE, 2007, p. 60). (Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Editora Hedra, 2007.)

Interessante né. Certo, queremos a mentira, desde que seja boa, mas queremos a verdade, desde que seja boa também. A ignorância é uma bênção? Bom, é uma perspectiva subjetiva e ao mesmo tempo que ergue discussões constantes, pois o conhecimento é necessário para também nos erguermos, contemplarmos o mundo e as pessoas e nós mesmo em nossas qualidades, tal como a vida.

Isso parece papo de coaching, não é? “Nunca é tarde para começar(?)”, “(Mas)Você não pode perder essa oportunidade pois é a chance da sua vida” WHATAFUCK. Não quero te confundir, mas ao contrário do que pregam os coachings, sim, o conhecimento naturalmente tem suas faces. Então, eu era feliz e não sabia, é verdade, eu era feliz pois não sabia que precisava pagar contas, pois não entendia os impostos, pois passava a tarde desenhando, eu era feliz na minha Matrix.


Cypher significa cifra e é também um intrigante, talvez mal interpretado e subestimado, personagem de Matrix, das irmãs Wachowski. Sua apresentação no filme ficou marcada pela forma como ele trai o Escolhido, Neo, e toda a galera da Nabucodonosor. Mas há muito mais por trás dessa traição do que um simples ato egoísta. Em uma das cenas, temos Cypher jantando com o Agente Smith, tentando fechar um acordo para entregar Morpheus e Neo, nessa mesma cena, ele solta uma frase SUPER emblemática, ele diz:

Olha, eu sei que esse filé não existe. Eu sei que o que ponho na minha boca, Matrix diz ao meu cérebro que é suculento e delicioso. Depois de nove anos, sabe o que eu percebo? A ignorância é uma bênção.

Interessante, não é? Há um poeta chamado Thomas Gray e em uma de suas obras ele toca justamente esse pensamento:

And happiness too swiftly flies. Thought would destroy their paradise. No more; where ignorance is bliss, ’Tis folly to be wise. — Thomas Gray

E a felicidade voa muito rapidamente. O pensamento destruiria seu paraíso. Não mais; onde a ignorância é uma bênção, é loucura ser sábio. (Tradução livre)

Ainda nessa cena, Cypher destaca um termo importante sobre o seu acordo:

Eu não quero me lembro de nada. Nada! Compreendeu?

Agora está claro, Cypher está escolhendo a ignorância. Indo contra todas as ideias do novo mundo, ele está abrindo mão da sua liberdade, realizando o seu último ato… de liberdade? Tomando uma escolha. A partir desse momento, fica evidente que Cypher é o Judas, que tem, desde o começo, guiado seus amigos e o Escolhido, para uma armadilha. Para ele, a realidade é um trauma, enquanto a Matrix é uma resposta sutil, um acalento, onde ele encontrará felicidade em prazeres mundanos, na ilusão, mas faz diferença? Para ele não.

Platão, outro carinha que fritava demais, propôs uma ideia, mais ou menos assim: Imagine uma caverna com pessoas presas lá dentro. E elas sempre estiveram lá, e a única coisa que elas reconhecem do mundo, são sons aleatórios e figuras em forma de silhuetas contra uma parede, criadas por causa de uma fogueira próxima. Okay, então, digamos que eles vêem a sombra de uma árvore, eles vêem uma árvore, mas é apenas a sua sombra. Porém, é a realidade deles, portanto, tomada como verdade. Um belo dia, um deles consegue sair… seus olhos ardem, seu corpo se contrai, a confusão é tanto física, quanto mental, uma vez que o mundo externo, a realidade, será um choque do qual ele terá que lentamente absorver, refletir e compreender nos limites do seu raciocínio. É como a cena em que Neo é retirado do tanque pela Nabucodonosor. Após encarar o mundo real, ele é jogado novamente para uma simulação para receber uma explicação sobre o que é a Matrix, e aí ele surta. Mas o ponto é, a pessoa saiu da caverna, encarou a verdade, mas algo o fez voltar, e pior, ele contou para todos o que havia do outro lado.

O que acontece quando as pessoas encaram algo que não faz sentido para a sua realidade? Matam. Exterminam. Aniquilam. A realidade é dura e cruel, enquanto a ignorância é confortável, amável, piedosa. Tipo o lance da mentira.

Cypher quer voltar para a caverna, e para isso, ele está disposto a entregar a vida de todos aqueles que são, praticamente, sua família. E se, Cypher ou whatever, tivesse tomado a pílula azul? Lembram do que Morpheus diz para Neo?

Se tomar a pílula azul, fim da história, vai acordar na sua cama e acreditar no que quiser. Se tomar a pílula vermelha, fica no País das Maravilhas, e eu vou mostrar até onde vai a toca do coelho. Lembre-se, eu estou oferecendo a verdade, nada mais.

É verdade que ele oferece a verdade. Há um vídeo gringo muito bom que dialóga sobre isso, ele aborda a ideia do que aconteceria se Neo escolhesse as duas, e tomasse as duas pílulas, e reforça pensarmos nas pílulas sob dois pontos de vista, farmacêutico e tecnológico. Por exemplo, dois remédios com funções inversas deveriam se anular, certo? Mas não se anulam, pois cada um age de forma diferente no nosso organismo, e apesar de não se anular, podem fazer um estrago. Do ponto de vista tecnológico, provavelmente nada aconteceria, pois a pílula azul seria como um firewall, que impediria a vermelha de hackear a conexão física e digital das máquinas com o corpo de Neo. Voltando à pergunta principal, podemos imaginar que a pílula azul seria escolher a ignorância, e assim, Neo acordaria em casa e esqueceria tudo, certo? Não, em nenhum momento é dito que ela vai apagar a mente de Neo sobre o evento. Em um quadrinho do universo Matrix, A Life Less Empty do autor Ted McKeever, vemos uma personagem que escolhe a pílula azul. Ela discorre intensamente sobre o seu remorso de se acovardar diante da possibilidade de descobrir a realidade. A pílula azul, não vai te deixar em um mar de ilusões perfeitas, mas sim destruir com o seu psicológico, afinal, somos humanos e nossa maior falha e qualidade, é a curiosidade.


Cypher quer voltar para a caverna, mas talvez ele não seja como Judas. Há diversos pontos que destacam a mágoa de Cypher com a realidade, além de ter escolhido viver em um mundo destruído, sendo caçado e subsistindo miseravelmente. Há uma cena em que ele conversa com Trinity, deixando claro que ele tinha uma forte afeição por ela, que aparentemente veio se transformando com o tempo, ou seja, é possível que eles fossem mais próximos ou no mínimo não tão indiferentes no passado. Mas se voltarmos um pouco mais, lá no começo, também tem um trecho que não podemos deixar passar, trata-se de uma ligação, entre Cypher e Trinity:

— Você gosta dele, não é? Gosta de observá-lo. (Cypher)
— Não seja ridículo (Trinity).
— Ele vai morrer, você entende isso? (Cypher)

Apenas como nota, na versão original, Cypher finaliza dizendo: “Nós vamos matá-lo, você entende isso? Ele irá apenas morrer como os outros.”

O que isso nos diz? As fraquezas, os traumas de Cypher. O choque do mundo em pedaços, a rejeição de Trinity, e talvez o ponto determinante, a devoção de Morpheus. Em Matrix, Morpheus soa como alguém em busca de um herói, uma missão nobre e em prol da humanidade, mas em outra perspectiva, e possivelmente para Cypher, Morpheus era um fanático religioso que não se importava com as consequências de suas ações, pois ele acreditava estar agindo em pela profecia; que por acaso, também possivelmente, foi escrita por uma das inteligências artificiais, parte da Matrix. Ele não está todo errado. Na Nabucodonosor, todos acreditam no que Morpheus acredita, todos dão suas vidas por essa crença, e Cypher não vê da mesma forma, ele é desiludido, crítico e não se encaixa mais na família. Isso tudo é bem familiar com N cenários que conhecemos, reais e ficcionais, não é?

Um trecho foi retirado do filme, mas é possível encontrá-lo no roteiro original.

Cypher:Eu vou te contar um segredinho aqui. Agora, não diga que eu te contei, mas você não é a primeira vez que Morfeu pensa ter encontrado o Escolhido.
Neo: Sério?
Cypher: Pode apostar. Isso o faz continuar. Talvez faça todos nós continuarmos.
Neo: Quantos houveram?
Cypher: Cinco. Desde que cheguei aqui.
Neo: O que aconteceu com eles?
Cypher: Mortos. Todos mortos.
Neo: Como?
Cypher: Honestamente. Morfeu. Ele fez todos acreditarem nessa besteira. Eu vi cada um deles encarar um Agente e vi cada um deles morrer. Um pequeno conselho: se você ver um Agente, faça o que façamos; corra. Corra pra caralho. (Tradução livre).

Definitivamente, um dos traumas de Cypher é ver Morpheus como a causa da morte de tantos e do futuro que espera seus amigos. Ou ao menos eram amigos. De certa forma, esse pequeno trecho pode ter sido, até mesmo, um alerta, a fim de salvar Neo. Lembra-se da conversa dele com a Trinity? Onde ele disse que iriam matá-lo? Pois é, ele já temia e talvez, em seu âmago, seu temor fosse genuíno pela vida de mais um inocente que Morpheus traria para aquele mundo impiedoso.

Cypher, é o personagem deslocado e talvez um dos mais profundos. Agora, a sua mentira, sua traição, podem ser também um ato de desespero. Ele estava cansado da batalha, descrente de Morpheus, destruído pela rejeição de Trinity e sem se encaixar na sua atual realidade. O homem volta para a caverna. Bem, literalmente, pois no final das contas, descobrimos que Sentinelas não diferem X9!

A ignorância é uma bênção, não é?


Por fim, segue alguns links interessantes 🔗

A Life Less Empty de Ted McKeever — imgur.com/gallery/Dv8jyMc
Obra com o quote de Thomas Gray — bit.ly/3d4OEaH
Roteiro de Matrix no DailyScript — dailyscript.com/scripts/the_matrix.pdf
A Caverna do tio Platão na UEFS — uefs.br/filosofia-bv/pdfs/platao_16.pdf

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