Março, 2021

deixa eu te falar que #5 💬 - o silêncio em cores 🎨 – o diálogo do silêncio e as emoções em cores de mad max.


deixa eu te falar que | 23 min de leitura 📖

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#detfq · detfq #5 - o silêncio em cores - o diálogo do silêncio e as emoções em cores de mad max

Deixa eu te falar que o silêncio pode ter muitas faces, se prestarmos a atenção, mas está sempre beirando o extremo das nossas percepções. Talvez seja pela necessidade ou impulso de nos comunicarmos, que muitas vezes, o silêncio parece opressor, agressivo, intimidador, mas também pelos inevitáveis escapes da realidade em busca da utópica paz, nos reservamos em isolamento, psicológico ou não, para encontrar um tipo de silêncio convidativo, caloroso. Nós conseguimos ter clareza sobre todos os tipos de silêncio, pois eles preenchem todos os momentos da nossa vida. Ele é quase que um sentimento neutro ou talvez aquele sentimento que possua em seu âmago todos os outros sentimentos, e repousa apenas esperando um momento certo para dialogar, para nos fazer sentir e transmitir o que está guardado. O silêncio é também o nosso portal ou um convite para a introspecção. Olhares trocados, detalhes apreciados, o calor do toque ou calafrio da descoberta, o sol poente, as estrelas que brilham, o sabor do chocolate, a sensação de saciedade. O silêncio se comunica o tempo todo. Patrick Rothfuss conseguiu traduzir em palavras uma possível interpretação do silêncio, uma vez que ele ilustra as percepções emotivas e a evolução não apenas da sua narrativa, mas também dos seus personagens dentro do universo de A Crônica do Matador do Rei.

Noite outra vez. A Pousada Marco do Percurso estava em silêncio, e era um silêncio em três partes […] A parte mais óbvia era uma quietude oca e repleta de ecos, feita das coisas que faltavam […] Dentro da pousada, uma dupla de homens se encolhia num canto do bar. Os dois bebiam com serena determinação, evitando discussões sérias ou notícias inquietantes. Com isso, acrescentavam um silêncio pequeno e soturno ao maior e mais oco. Ele formava uma espécie de amálgama, um contraponto […] O homem tinha cabelos ruivos de verdade, vermelhos como a chama. Seus olhos eram escuros e distantes, e ele se movia com a segurança sutil de quem conhece muitas coisas. Dele era a Pousada Marco do Percurso, como dele era também o terceiro silêncio. Era apropriado que assim fosse, pois esse era o maior silêncio dos três, englobando os outros dentro de si. Era profundo e amplo como o fim do outono. Pesado como um pedregulho alisado pelo rio. Era o som paciente ― som de flor colhida ― do homem que espera a morte[…]. (O Nome do Vento — A Crônica do Matador do Rei — Livro 1 — Patrick Rothfuss)

A maneira como compreendemos o silêncio muitas vezes é puramente literal, mas quando se leva para um olhar filosófico ou mesmo artístico, podemos até mesmo encará-lo a fim de aliviar nossos medos e angústias.

O diretor George Miller possui uma afinidade com o silêncio, o que é perceptível na série Mad Max, onde somos apresentados a um personagem que segue uma trajetória de desventuras em um universo apático e distópico. Em Mad Max — Fury Road, Max mergulha em conflitos externos e internos durante a jornada ao lado de Furiosa, ambos sobreviventes de um mundo corrompido, cientes de que não podem confiar um no outro, mas não possuindo nada além da confiança. Os dois personagens são apresentados como em uma busca por redenção, motivados por uma fuga ou encontro com o passado. Entretanto, nada disso é discutido diretamente no filme, que por sinal traz profundas questões filosóficas e morais com temas atuais a ponto de considerarmos a distopia um momento presente, mas sem tempestades de areia sinistras. E o que fica sem ser dito? Aí está o silêncio.



Em um discurso do diretor, publicado no site Indiewire, George Miller diz:

Uma das minhas noções era que se eu fizesse as sequências de ação como um filme mudo e elas fossem vistas como um filme mudo, então só ficaria melhor com o som. Eu quero que você assista e veja se sabe exatamente o que é. Eu definitivamente tinha o ditado de Hitchcock na minha cabeça. Ele diz: Eu tento fazer filmes onde eles não tenham que ler as legendas no Japão." (Tradução Livre - IndieWire 08/15)

Veja, agora que entendemos que o filme está além das palavras, também podemos entender como o silêncio dialoga conosco principalmente em nível emocional. Miller vai além das cenas e evidencia algo que está mais presente do que nunca na sétima arte, o laranja e o azul. Se você já assistiu ou vai assistir o filme, repare em como o laranja está o tempo todo oscilando seus tons no horizonte, assim como o azul no céu e outros elementos pontuais. Isso acontece, pelo fato de o laranja e azul serem cores que se complementam, criando integralidade.

O azul contrastando com o laranja, não apenas destaca os tons quentes, como ajuda o espectador a distinguir as camadas e profundidades na cena, atuando como extremos de um todo. É muito comum vermos o laranja figurado em paisagens, elementos externos, alguns pontuais e principalmente na pele, quando os tons de pele são variações claras e escuras do laranja, enquanto o azul permeia na atmosfera, ambientes internos, alguns pontuais e também acima de linha do horizonte. Sendo assim, é incrível percebermos como não é apenas o movimento e expressão que criam o diálogo além do som, mas também o próprio uso de cores - e muitas vezes até mesmo sua ausência, isso se evidencia, como um bom exemplo, na versão Black and Chrome Edition de Mad Max Fury Road, uma versão do longa todo adaptado em tons de cinza, uma variação da obra prima.


É interessante também pensarmos como as cores, assim como o silêncio, podem simbolizar a condição psicológica. O jornal BMC Medical Research Metodology fez uma pesquisa para compreender este ponto, onde, resumidamente, quando se tratava de interligar situações depressivas com uma cor, o azul se destacava, enquanto o amarelo era associado a situações saudáveis.

Esta é uma forma de medir a ansiedade e a depressão, que foge do uso da linguagem. O que é muito interessante, é que esta pode ser uma maneira melhor de capturar o humor do paciente do que perguntas. (Tradução Livre - Peter Whorwell da University Hospital South Manchester para LiveScience via NBC News 02/10)

Mas não necessariamente o azul como um todo indica a depressão, pois na mesma pesquisa, o tom claro do azul era associado ao bem estar, ao contrário do tom escuro. Talvez seja a proximidade ou a relação com tons de cinza, que geralmente associamos ao preto e por aí vai.

Em Mad Max, é curioso como o trabalho com a cor é magnífico. Nós temos cenas de perseguição que buscam despertar euforia e aflição, cenas de perigo que oscilam em tons escuros de laranja, quase vermelho. Temos cenas onde nos é apresentada a decadência humana, os Garotos de Guerra, fiéis ao ditador Immortan Joe (não, não vamos nos aprofundar nesse tipo de símbolo, quem sabe em um outro episódio), também reflete o sofrimento de Rockatanski ao ser mantido em cativeiro, oscilando muitas vezes na sobriedade e alucinações. Finalmente temos cenas depressivas, que deixam o suspense do inesperado no ar, como as noturnas que representam essas emoções através de tons escuros de azul, enquanto as cenas sob o céu azul claro, em muitos momentos, trazem o sentido de esperança, figuram a luta de Furiosa e sua busca implacável pela liberdade. Perceba, é tudo sutil, mas com grande significado. Se o filme fosse mudo, o silêncio ainda estaria dialogando.

Mas é legal também como as cores mudam seu diálogo, como em algumas cenas onde o laranja fica em um amarelo tão claro que reflete a pureza ou ingenuidade, como quando vemos as Esposas de Joe, ou em cenas noturnas onde elas estão iluminadas ao fundo do caminhão compartilhando esperança e amor, enquanto Max e Furiosa estão cobertos pelo azul escuro logo na frente, explicitando seu estado devastado, oprimido e culposo.


O silêncio dialoga de muitas formas e tudo o que precisamos fazer é prestar a atenção. Há sempre um pequeno detalhe para compreendermos uma grande mensagem.


Por fim, segue alguns links interessantes 🔗

Entrevista de George Miller na Indiewire (é maneiro como ele comenta de toda a produção!)

Artigo sobre cores e emoções (está no site da NBC e tem vários gatilhos para outros artigos)

Entendendo a combinação entre Azul e Laranja em filmes e Games (artigo maneiro sobre o tema proposto aqui, indo até games, vale a pena conferir)

Um caso curioso de cores complementares (um vídeo em inglês recheado de informações sobre o trabalho de cores em diversas produções do cinema)

Behind Scenes de Mad Max (nem preciso dizer o quão necessário, né)

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