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Abril 25, 2022

um conto do mar

contos | 190 min de leitura 📖

Durante uma sessão de tatuagem, o velho Eli confessa para seus amigos uma de suas desventuras, narrada com tinta e agora, com suas palavras. Quando jovem, ele vivia em uma pousada lavando pratos, servindo mesas e tatuando todo o tipo de pessoa, de simples mercadores aos piores bandidos. Sua vida vira de cabeça para baixo quando ele mata um oficial da marinha, em legítima defesa, mas em Meradosia, esse é um detalhe que não importa, pois Eli é negro.

Tomas, um experiente marinheiro que se tatuou com Eli mais cedo naquele dia, o ajuda a escapar, levando-o junto em uma jornada pelos mares em busca de uma criatura mitológica: o dragão-do-mar.

Eli irá aprender a trabalhar no navio, conhecer pessoas tão diferentes quanto o sol e a lua, assim como descobrir uma paixão. Mas o destino também lhe ensinará sobre humildade, amizade e a dor.

Lançado como um livro, a novela Um Conto do Mar agora pode ser lida na íntegra. Você pode rolar por essa página da maneira que mais agradar a sua leitura ou também usar o menu abaixo para navegar entre os capítulos.

Prefácio por Larissa Fonseca de As Moscas na Janela | Comentários por Gabrielle Batista do @termineicast | Abertura | Tintas | Parte I | Parte II | Parte III | Parte IV | Parte V | Parte VI | Salpicar | Tatuagem e Sensibilidade


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Prefácio

A terra em que se passa Um Conto do Mar é uma terra fantástica, mas na qual, tal como os aromas que se emanam das páginas e alcançam o leitor − e penso agora nas broas ao rum feitas em uma certa hospedaria de Meradosia −, se permeiam as dores e preconceitos deste nosso mundo.

Do lado de cá, aqueles que, historicamente, detiveram o poder, se definiram como padrão e se colocaram como centro do mundo. O homem branco, heterossexual, europeu e cristão deu a si mesmo o direito absoluto de conquistar, subjugar, julgar e punir segundo seu próprio interesse, silenciando o Outro e qualquer história que o Outro pudesse contar. Qualquer perspectiva desviante dessa que é vista como universal é tida, pois, como um erro. Um “erro” pago com a própria vida, grande parte das vezes.

Eis que em Um conto do mar temos vislumbres de várias histórias, e quem as organiza é Eli, um homem negro e fora do padrão heteronormativo. É também um homem idoso que, no dia em que vai finalizar uma tatuagem que vinha fazendo, decide contar um conto ao tatuador e aos amigos que o acompanhavam. Detalhes importantes: também ele é um tatuador, e também as tatuagens em seu corpo são uma narrativa. Tal como a Helena da Ilíada bordava uma tapeçaria em que se contava uma versão da Guerra de Troia, Eli traz, desenhados em seu corpo, pedaços daquilo que ele viveu. Mais: a sua história é também a história daqueles com quem conviveu e daqueles que tatuou. A tatuagem, então, além de poder ser em si mesma uma arte narrativa, oferece um lugar de privilégio à oralidade: tatuando, ouvem-se as histórias daqueles que se deixam marcar.

“Não se tratava apenas da arte, quando as pessoas entravam na minha sala e se sentavam para a tatuagem, era como um ritual de vulnerabilidade, solidariedade ou qualquer coisa assim, as pessoas apenas compartilhavam.”

A história que Eli conta é uma história de sua juventude, e tem início na época em que ele trabalhava em uma hospedaria do porto de Meradosia como ajudante e, ao mesmo tempo, ganhava seus trocados tatuando aqueles que ali chegavam. Eli tem o apoio e compreensão do hospedeiro e de sua família, mas é, cotidianamente, vítima de racismo por frequentadores do local. As violências sofridas por Eli nos tocam mais ainda à medida em que sabemos que não se tratam de ficção: o racismo é real, é estrutural e mata. Como aponta Eli:

“No fundo, sabíamos da verdade: eu não precisava cometer um erro para ser julgado, bastava estar por perto.”

Quando percebe que será acusado por um crime que cometeu em legítima defesa, Eli precisa deixar a hospedaria às pressas, recebendo ajuda de Tomas, um marinheiro que já o tinha salvo em outra ocasião e o qual ele já tatuara — tendo os dois, inclusive, trocado algumas palavras sobre a viagem em que Tomas estava. Em fuga, é nessa viagem que Eli acaba por se aventurar. Nela, passará por descobertas e experiências que o modificarão para sempre... E descobrirá, com ainda mais intensidade, como tudo o que é considerado diferente incomoda e se torna passível de extermínio; em um mundo repleto de racismo, machismo, xenofobia e LGBTfobia, até as criaturas fantásticas, também “diferentes” do aceitável, se tornam alvo fácil.

A leitura de Um conto do mar vai para muito além do entretenimento; é objeto de reflexão e discussão. É um grito. Permite que alguns leitores leiam a história de Eli se identificando com a sua dor, e que outros possam questionar e repensar o próprio lugar na cadeia de opressão.

Ouvir escritores negros é importante e necessário.

Sentemo-nos e “ouçamos” esta história.

Larissa Fonseca

 

Comentários

Um Conto do Mar é mais do que eu imaginei.

Sabe aquelas histórias de pescador mas que a gente não imagina que podem ser mais do que mistérios e apenas coisas inventadas? Além de mostrar como o tempo passa, mas nossos amores, medos e felicidades estão sempre com a gente.

O livro tem uma pegada rápida, partes que te prendem demais e o Wash conseguiu transformar tudo em algo tão próximo que não parece ficção, parece algo que passaríamos em um dia comum, numa vila.

Claro que ele me deixou doida para tatuar, porque para os marinheiros (assim como para mim), as tatuagens no corpo contam histórias de quem somos e fomos. Assim como mostra por tudo que já passamos na nossa longa estrada.

Terminei querendo ir a alto mar, conhecer pessoas boas, cozinhar e acima de tudo encontrar seres mágicos e protegê-los.

Se encantem e conheçam esse universo, mas não se esqueçam de quem são e suas missões.

Gabrielle Batista
@termineicast





Um Conto do Mar

 

Sinto a dádiva falha do delírio consumir meu âmago,

Arrasto-me pelo abismal inesperado,

Vejo turvas composições de outrora para esquecer,

A queda se faz plena e suave,

Em meio às desventuras e o amargo do tempo,

Fechando os olhos para o prazer de carregar a dor.

Por entre meus dedos se esvaem águas azuis,

E então sou os ventos, os mares, o fogo e a terra...

 

Tintas

O sino da loja tocou em um tom monótono, ecoando sutilmente pela atmosfera que parecia indecisa sobre a qual momento do tempo e espaço deveria pertencer. Quando o badalo batia suavemente contra a borda sonante, fazia muito mais do que avisar que alguém estava chegando: também criava uma nova expectativa no coração de seu dono, descobertas e emoções para viver nas narrativas de outra pessoa. Experimentar a vida e o mundo através das memórias de visitantes e eternizá-las como desenhos sob a pele.

Pela porta passou um velho. Ele fitou o pequeno objeto balançando sobre sua cabeça, nunca se cansava daquilo. O seu olhar sereno vagou de um lado para o outro enquanto ele adentrava a loja e pensava em quão nostálgica era uma porta com sino em uma época em que só se usa interfone e campainhas. Ele deslizou os dedos pela barba de cachos bagunçados, quase com nós, grisalha em um tom que lhe dava um charme incomum e se destacava na pele escura, charme esse que lhe escondia o peso da idade, mas também o premiava com aspectos de uma alma vivaz. Ao escutar o som do sino e dos passos, o dono da loja se dirigiu rapidamente à recepção.

O velho parou e fechou os olhos ao sentir o cheiro forte e doce do piso de madeira; aquela construção já estava em pé quando ele ainda era um menino. Costumava ser uma loja de sapatos, muito elegantes por sinal. A sapataria pertencia a uma família que já não morava mais por ali, mas muito dela permaneceu, como os azulejos que decoravam meia parede do que se transformara na sala de espera, brancos com ornamentos azuis e amarelos. “Portugueses, eu acho”, o velho pensou por um momento. O teto antes possuía pinturas em suas extremidades, reflexo do amor religioso dos antigos donos, mas o velho gostava mais da forma como estava agora, todo preto. Ele lembrou do escândalo que afastou a família do sapateiro da cidade, um momento memorável e trágico no qual um incêndio foi rapidamente contido, mas não antes de levar os dois filhos mais novos do casal.

Trágico.

Ele então afastou as más memórias e focou no que veio depois. Anos mais tarde, alguém comprou a loja, um rapaz de espírito jovem e indomável, do tipo artístico, que amava se experimentar e criar coisas interessantes e outras nem tanto. O velho deixou um sorriso sutil escapar, sentindo também um afago no seu coração, a memória era doce, como um abraço. “Que seja doce”, ele pensou.

Enquanto aguardava, ele observava quieto os desenhos mais antigos da loja, exibidos como em um grande mural preenchido por incontáveis molduras que estavam penduradas nas paredes: imaginação, sonhos, referências da própria trajetória; lá estavam dispostas inúmeras possibilidades de interpretações a quem quer que lhes desse o mínimo de atenção. Ele amava observar cada detalhe, por mais que já conhecesse intimamente quase todas as obras que descansavam ali, ao menos era o que ele achava.

A luz entrava tímida pela vitrine, preenchia toda a vista das janelas e passava entre os pequenos quadrados translúcidos e martelados que floreavam a porta emoldurada em metal. Decoração típica da região, de outra época, feita por mãos cansadas de muita solda e ferro quente. Trazia características únicas de uma bela peça artesanal, vistosa e pesada, como em um templo antigo, guardando segredos, histórias ou qualquer coisa assim. As paredes mesclavam-se às molduras. A maioria era preenchida por ilustrações encantadoras, trazendo uma dimensão interativa ao ambiente: narrativas isoladas e conjuntas, tal como um passeio em um museu underground, enquanto o chão vibrava ao exibir seus veios nobres e bem cuidados, rico em madeira de lei, transcendendo suas marcas e ranhuras do passado. Para o velho, era como caminhar sobre um disco de vinil, e talvez, para ele, essa sensação se repetisse também por todo aquele espaço, uma melodia do tempo, da nostalgia e da arte. Por capricho, os móveis eram vintage. “Tudo de outra época, assim como eu”, pensou o velho.

O jovem dono da loja caminhou até o balcão e descansou as mãos em cima do tampo de vidro.

— Olá, Eli — saudou ele exibindo um sorriso para o velho.

Eli, do outro lado, já o aguardava com um olhar animado. Uma música ritmada soava baixinho preenchendo o silêncio. As notas, excitantes, juntavam-se à letra melódica narrada por uma voz masculina rouca que logo foi acompanhada por um timbre macio e maduro.

— O bom e velho Floyd em vinil, estou certo? Israel. — Eli perguntou com uma expressão curiosa, era apaixonado por blues, mas de vez em quando sua audição o enganava. Ele passou a mão em um canudo dos longos dreadlocks que estavam presos em um coque frouxo e o enrolou com os demais. Em seguida, sacudiu a cabeça e os ombros avançando com passos lentos e curtos, como uma dança improvisada, em direção ao dono da loja. — Yeah! Essa vibe é inconfundível.

— Sim, meu amigo, é o bom e clássico Floyd — confirmou Israel encarando a empolgação de Eli. Ele também sorriu, mesmo não entendendo muito bem aquele jeito excêntrico do velho.

— Hoje vamos fazer algo especial para finalizar a sua sessão – anunciou o senhor.

— Estava ansioso por esse dia, já nem me lembro quando foi que começamos essa peça, não queria terminar, mas… sabe, eu quero terminar — completou Israel com uma gargalhada frouxa.

Eles se encararam como se pudessem ler os pensamentos um do outro.

— Assim como uma história, ela precisa ter um final, não é? — comentou Eli. Em seguida olhou para um desenho claramente mais antigo, exposto em um papel surrado e amarelado que ornava perfeitamente com o clima da loja; não velho, mas elegante. — Esse é novo? Um novo velho — concluiu, rindo.

— É sim. Encontrei nas coisas do pai.

— Eu não sabia que ele fazia esse tipo de pintura. — Eli se encantou com os tons primários que se destacavam na imagem. Era como um dragão junto ao corpo de um cavalo-marinho. — Deve ser uma peça única. Será que já foi tatuado?

— Não tenho certeza, mas, considerando que o encontrei dobrado no meio de cadernos antigos que ele usava para criar esboços, acho que foi só um experimento.

Eli chegou mais perto para apreciar o trabalho do falecido amigo enquanto o rapaz perdeu-se em seus próprios pensamentos.

— Hoje, Israel, eu vou lhe contar uma história — disse escorando-se no balcão.

— Pensei que eu já tinha ouvido todas em suas conversas com o pai.

— Quase todas. Essa, talvez, seja a mais importante. Como eu disse, hoje vamos terminar essa tatuagem e esse final precisa ser ao menos interessante.

— Temi que nunca me contaria o que faríamos para concluí-la. Faz tanto tempo que o senhor não aparece aqui que achei que não terminaríamos — Israel finalizou arqueando a sobrancelha, como uma mãe repreendendo o filho pequeno por algo que ele deveria ter feito, e não fez.

Em resposta, o velho exibiu os dentes, animado.

O rapaz convidou Eli para entrar e sentir-se confortável na sala de espera ao lado da sala do estúdio. Eli se sentou, e reparou que o espaço havia passado por uma pequena obra, escondendo antigos papéis de paredes de uma época tão passada quanto conseguia se recordar. Israel saiu rapidamente e voltou para servir uma xícara de café para o amigo de seu pai, também cliente de longa data. Depois andou até a porta para colocar a placa “fechado” voltada para a rua, mas nem sequer conseguiu dar dois ou três passos, pois foi surpreendido por uma batida na janela. Dois senhores aguardavam do lado de fora, trocando palavras bestas e gargalhadas exageradas.

— Aquele ur… ur… urubu chegou? Eu disse que ia viver o suficiente pra ver essa ta… tatuagem pronta! — exclamou um deles assim que Israel abriu a porta.

— Não imagino como ainda consiga aguentar a dor, já não chega as merdas da idade? — perguntou o outro.

— Dor por dor, que o sofrimento ve… venha e acabe de uma vez só, dizia meu pai — praguejou o primeiro. — Ignorante da escola, mas sa… sábio da vida.

Após entrarem no estabelecimento, Israel os conduziu pelo corredor até a sala onde Eli esperava. Quando se encontraram, os três homens mais velhos cumprimentaram-se de forma calorosa. Esse momento mostrava-se curioso aos olhos de um dos recém-chegados e empolgante aos olhos do outro, mas para Eli, o primeiro a chegar, tratava-se de um sonho havia muito tempo. Um sonho que se arrastou para ser realizado, que exigiu paciência e muitas sessões de tatuagem, mas do qual ele nunca iria desistir.

Israel se afastou, deixando os amigos conversarem a sós. Seguiu seu rumo para os afazeres, pegando algumas sacolas, caixas da recepção e indo preparar seu espaço de trabalho para a sessão longa que viria a seguir. Foram muitas as palavras trocadas entre os três amigos e antes mesmo do café esfriar o rapaz já convidava todos para o estúdio.

Entusiasmado, Eli foi o primeiro a adentrar o cômodo e, sem interromper a conversa, tirou o colete e o suspensório. Aguardou um segundo contemplando-se no espelho que preenchia toda a parede. Pensou em como tantas narrativas couberam nos desenhos que preenchiam seu corpo e, mais do que isso, como amava aqueles momentos de arte e com seus amigos. Então continuou. Desabotoou a camisa xadrez e a descansou, com todo o resto do vestuário, sobre uma poltrona que havia por perto. Enquanto seus amigos argumentavam sobre o tempo que perderam e exaltavam o glamour do jovem Israel, ele se aconchegou na cadeira abraçando o apoio à sua frente.

Com todo o equipamento em mãos, Israel aproximou-se por trás de Eli contemplando o trabalho feito até ali; uma incrível pintura expandia-se por quase todo o comprimento de suas costas com elementos escolhidos a dedo, tendo apenas um pequeno vão sem preenchimento, vazio.

— O que vamos criar hoje, senhor? – questionou o jovem.

— Não me venha com outra ferradu… dura e essas superstições! Não é, Dan? — condenou Marco, um dos velhos amigos. A descendência caucasiana entregava sua idade, mas não aparentava ser muito mais velho do que Eli. De todo modo, vestia-se estranho para um senhor de idade: gostava de usar camisetas largas, normalmente de times de basquete, era colecionador de tênis sneakers e só se sentia completo quando estava vestindo moletom. Os dois eram amigos de longa data... Haviam se ajudado em alguns percalços da vida, como a perda do filho para as drogas, o que quase afundou Marco em uma depressão destrutiva. Foram semanas que Eli passou convivendo com o amigo, que mal tinha forças para sair da cama. Marco vivia em uma casa tradicional, herdada da família, onde ele crescera, casara-se e tivera um único filho. Eles costumavam desmontar e montar tudo quando estavam juntos; Marco sempre fora genial trabalhando com as mãos, fosse em madeira ou pintura, e esse dom era de seu filho também. Era quase inexplicável a beleza que preenchia os corredores daquela antiga casa, preservada com seus aspectos originais, mas toda adaptada para suportar as novas tecnologias e sobreviver por muitos anos, tudo obra de Marco e seu filho.

Eli fitou Marco com um olhar cerrado, mas foi interrompido antes de soltar a resposta que estava coçando na ponta da língua, dura e afiada.

— Deixe-o pendurar o que quiser na pele, homem! — rebateu Dan, o outro amigo. Todos riram. — Mas enquanto você insiste em vir aqui tatuar essas suas fantasias, ouvi dizer que a Maju ainda espera um coração com o nome dela! — finalizou, tentando provocar.

— A Maju já tem o meu, por que diabos ela precisa que eu a presenteie com outro?

— Não se… seja rabugento! Agrade quem ainda o ama. O… o que mais nos resta? — Marco ergueu o tom, mais do que animado.

— Então... você irá contar a história que vem ensaiando há tantos anos sobre seu tempo na marinha? — Dan perguntou cortando a enrolação; podia ver a ansiedade na cara de Israel. Ele vinha acompanhando as sessões do amigo há anos, sempre ensaiando para também se tatuar, mas com medo demais para concretizar essa vontade. Dan era e parecia o mais velho dos três, mas estava em melhor forma; quando jovem, ao sair do exército, ele se dedicou ao atletismo, ganhou fama e fez a vida como pugilista. Era um homem alto, acima da média, ombros largos sempre destacados pelas jaquetas jeans que amava usar. Anos atrás ele havia sofrido um trauma durante uma luta e teve que se afastar, mas Eli e Marco não o deixaram desistir: investiram com o amigo em um espaço para construir uma academia na cidade. Dan vinha dirigindo essa academia desde então.

Eli sempre pensava na amizade que tinha com Dan, afinal ambos carregavam uma rivalidade ferrenha desde a juventude, mas foi por acaso que acabaram criando um elo. Muitas vezes Eli achava que era assim que os inimigos acabavam, como amigos. Quando perguntavam para ele sobre essa rixa, ele nunca sabia explicar o motivo; assim como Dan, gaguejava, mas acabava dizendo que era algo do passado e provavelmente tinha ficado por lá.

— Para começar não foi na marinha, mas, sim, no mar.

— Diabos, homem! Pensei que você tivesse servido.

Eli olhou para Dan tentando se imaginar na vida militar, como nas histórias do amigo.

— Eu vou contar a história dessa tatuagem. Sinto muito pela enrolação, Israel, mas isso vai ajudar na conclusão — disse Eli.

— O dia é todo nosso, senhor! — respondeu Israel animado.

O velho se ajeitou na cadeira, respirou fundo mantendo um olhar pensativo como se organizasse em sua mente todos os eventos de que se recordava — talvez não em ordem cronológica, seria pedir demais, mas ao menos o que realmente importava para que tudo pudesse se encaixar. Então disse:

— Do coração à tormenta, tudo isso se trata do dia em que eu morri e fui salvo por uma sereia.

Todos os presentes se encararam com as sobrancelhas arqueadas.

— Ah! — exclamou o velho Marco. — Pi... pirou de vez.

— Se meu pai estivesse aqui, ele lhe daria uns belos tapas por inventar lorota — comentou Dan. — Ele diria: “Se a língua tá grande pra contar mentira, vamos vender por quilo e fazer um bom dinheiro!”

— Meu pai não pre… precisava falar nada além do meu nome que eu corria, chorando, até ele e já… já o encontrava com o cinto na mão. — Marco parou, passou as duas mãos no rosto e continuou: — Si… si... sinto calafrios só de lembrar.

— Eu menti apenas uma vez para o meu — disse Eli. Os amigos bufaram descrentes. — Tinha chegado da lavoura com sangue pingando das mãos, encharquei a madeira velha e foi como se ele farejasse oportunidade para confusão, era o que fazia quando não estava dormindo de tão bêbado ou ocupado batendo na esposa. — Ele deu uma breve pausa e pediu um copo d’água para Israel, um pedido que o rapaz acatou rapidamente. Então voltou ao que contava:

— Bravo como o cão, nunca esqueci daquela surra. No outro dia, ele me chutou da cama antes do sol nascer. “Se o filho tinha forças pra lhe tomar a mulher que amava antes mesmo de nascer, teria forças pra trabalhar igual um animal”, ele dizia. Não o culpo, cada um carrega seus demônios. Mas naquela manhã não era ele quem estava os carregando. Eu estava saindo com a ferramenta nas costas, cansado e ainda zonzo da surra, da varanda já conseguia ouvir os gritos estridentes de Heloísa, como se houvessem jogado água fervente em um gato. Pobre mulher. Larguei tudo e quase derrubei a porta, as feridas abriram todas de novo. — Eli passou a mão sobre a barba e suspirou. As lembranças tristes são as mais difíceis de serem deixadas quietas, e ele tinha uma porção delas. — Ele tinha uma espingarda que usava para caçar, agarrei a maldita que vivia exibida como um troféu naquela sala minúscula, corri para o quarto e chutei o velho por cima da cama, ele praguejou e levantou espiado. Dei algumas coronhadas nele e não sei se teria parado caso a Heloísa não me segurasse. Apontei a arma para a cabeça dele, o velho não parecia mais tão assustador como antes.

Ele deu um sorriso irônico e continuou:

— Falei que mais um passo eu ia estourar os miolos dele. Rezei para que ele não fizesse nada. Acredite, a maldita arma estava mais vazia que meu estômago naquele dia. Ele se acalmou e nunca mais me dirigiu uma palavra. Pedi para que Heloísa fosse embora comigo, mas ela havia escolhido o próprio destino. Eu comi o pão que o diabo amassou por um bom tempo, mas daquele pobre coitado eu nunca mais ouvi falar.

— Meu Deus, Eli! Eu não sa… sabia dessa história — comentou Marco, espantado. Conhecia Eli há mais tempo do que podia se lembrar, mas a verdade era que não sabia quase nada do passado do amigo, antes de ele chegar na cidade.

— Essas merdas que carregamos... se essas crianças de hoje tivessem a menor ideia, quem sabe o mundo seria diferente? — disse Dan.

— O mundo atual é diferente, meu amigo. Nós que não acompanhamos mais e acabamos assim, velhos reclamando de tudo. E os jovens, como Israel, são obrigados a aguentar.

Por mais que Israel tenha achado graça no comentário de Eli, ele era o tipo de pessoa que tinha o elo forte com a família, seguia tradições e estava acostumado a ouvir sobre os altos e baixos.

— Mas e essa hi… história, hein? — Marco aproveitou para cortar o silêncio que brevemente havia se instalado.

— Sereia, por favor, Eli! — reforçou Dan.

— Não esperava que acreditassem, mas vão ficar me questionando ou posso contar a maldita história?

 

Parte I

A luz do sol trazia o despertar naquela manhã, transbordando o calor tropical que se arrastava sobre o mar e cobria a cidade costeira. Os sons da agitação matinal invadiam os corredores do antigo estabelecimento. Ali as almas atormentadas encontravam refúgio para suas dores e amarguras, às vezes entre socos e pontapés ou sob lençóis de malha velha, como suas vestimentas, ou, quando com sorte, no fundo de um bom destilado. O cheiro da madeira encharcada pelos temporais do verão adormecia os sentidos daqueles que lutavam para fugir da pocilga, pois, mesmo que fosse o pior, ainda era um refúgio.

Eu esfreguei com força o dorso das mãos contra os olhos. Senti o amargo nos lábios antes de a dor consumir os meus pensamentos enquanto meu olhar apenas vagava da parede escura para a cortina frisada da janela. Esfreguei a testa e a cabeça desejando não ter acordado, imaginava demônios-da-tasmânia, alguns brincando com meu cérebro enquanto outros se jogavam agressivamente de encontro à parte interior dos meus olhos.

“Maldita ressaca”, pensei.

Abatido, mas com muito esforço, levantei num pulo. Suspirei enquanto encarava o mundo do outro lado da janela. O quadrado de madeira descascada e as placas de vidro sujo e trincado não tiravam a beleza do horizonte, o amarelo ouro do sol dava uma nova cor para o mar, que quase se mesclava aos tons tênues que refletiam nos telhados encharcados da chuva noturna. Porém, logo as cores se perdiam, e, ainda na mesma tela, podia-se ver a fuligem escura escorrendo pelas ruas, as pessoas que se misturavam em classes tão distintas quanto o óleo da água, o caos visual de um cotidiano frenético e mais uma vez a realidade se fazia nua e crua.

Meu ânimo era a vantagem em uma vida medíocre. Não demorei para me vestir, mas, logo que as calças subiram, uma pancada na porta me arrancou dos devaneios.

— Um cara passou aí, garoto! Disse que já voltava para falar com você! — ouvi a voz rude do hospedeiro. — Tome seu café e se apresse! — Ele soava como o presságio de uma tempestade, que se anuncia com ventos sérios e tenebrosos, mas, por sorte, nem tudo é o que parece, muito menos ele.

Agarrei algumas peças de roupas que estavam jogadas sobre uma cadeira próxima à cama. Algumas folhas de esboços caíram se espalhando pelo quarto todo, desenhos que eu vinha havia tempos tentando finalizar, assim como alguns poemas absurdos e contos sobre alucinações e mundos irreais. Mas a falta de foco se fazia intensa naqueles dias, assim como os sonhos perturbadores e estranhos que eram a origem de grande parte das últimas criações; tigres em corpos de serpentes, leões com tentáculos de polvos e outras bizarrices com tons mitológicos se amontoavam em folhas amassadas por todos os cantos. Peguei um papel no qual haviam algumas ideias da noite anterior, decidi deixá-lo por perto, caso a inspiração resolvesse me visitar, dobrei-o e o enfiei no bolso.

No banheiro, joguei água no rosto para despertar decentemente. Em seguida, resistindo à dor de cabeça e às náuseas, saí do quarto na esperança de encontrar um alívio em qualquer lugar ou qualquer coisa. O corredor cantava a cada passo que eu dava sobre o piso torto e maltratado, assim como as paredes de alvenaria surradas que se esforçavam para permanecerem em pé quando o vento corria pelas incontáveis frestas.

A escadaria me levou até o salão onde o hospedeiro atendia meia dúzia de frequentadores, sendo metade pessoas que já ocupavam o lugar há pelo menos duas noites seguidas. Era assim em épocas de alto fluxo comercial, mas ao menos havia dinheiro que não provinha de jogatinas, ladroagem e sabe Deus o que mais.

Esfregando o rosto, caminhei por entre as mesas limpas e algumas ainda lotadas de garrafas e canecos, assim como pratos com broas, frutas e xaropes. A brisa que saía fresca do mar se perdia em uma mistura agridoce até passar pela porta da hospedaria, mas era amaciada pelo cheiro do fermento que crescia as broas na cozinha e as frutas vermelhas e cítricas dos restos de bebidas sobre a louça suja.

Era relativamente tarde, mas o sol já inundava o local apontando no horizonte, o amarelo se mesclava nos veios do chão de madeira revelando a idade do lugar, e trazia um calor sutil e reconfortante para aqueles que até então se ocultavam nas sombras, como se fugissem da vida. Na porta, meus olhos mal se acostumaram com o novo dia e logo fui surpreendido.

— Estava ansioso para chegar aqui — disse um jovem marinheiro chegando de surpresa.

Ele se aproximou e estampou um sorriso largo no rosto. Observei seu semblante: cabelos arrumados e uniforme limpo, imaginei que se tratava de uma dispensa. Havia muita gente daquele tipo que passava por ali, bancando o herói para impressionar a família quando, na verdade, tinha calos nas mãos de tanto descascar batatas e alimentar o navio. Pelo menos fazia algo de útil.

— Ouvi dizer que você é o talento da região – continuou, fitando-me com o olhar espremido enquanto ajeitava as golas da camisa com as duas mãos.

Retribui o comentário com um sorriso, que exigiu certo esforço, e acenei convidando-o a me acompanhar. Nós caminhamos por um corredor entre as mesas até chegarmos a uma salinha próxima ao balcão. O cheiro do álcool impregnado na madeira lustrada me causava, ligeiramente, um pouco de náuseas, mas ao mesmo tempo aquilo, estranhamente, estava abrindo meu apetite; não apenas o álcool exalava no ar, mas também as massas que já cresciam nos fornos e as frutas moídas que descansavam com o trigo fermentado na cozinha.

Ao fundo, empurrei a portinhola adentrando a sala, seguido pelo marinheiro. Uma pequena janela iluminava generosamente todo o espaço. A entrada alta e larga não decepcionava, pois a porta era apenas para separar o ambiente, talvez tão efetiva quanto um parapeito, tal qual seu tamanho. Tudo estava em seu devido lugar. Papéis, lápis, tinteiros e tintas sobre uma mesa ao canto. Os bancos ficavam escondidos sob a maca que, suspensa na parede, estava coberta por uma malha quase plástica e fina, parecida com um tecido, mas mais frágil. Presente de um gringo que dizia tê-la trazido de hospitais da Espanha, era um médico espanhol, mas também mercador, vai entender.

Puxei os bancos, sentei e respirei fundo, escutando o monólogo do outro sobre a sua suposta aventura, enquanto ele se despia da camisa.

“Ele nem precisou parar para pensar”, refleti enquanto ouvia e arrumava as ferramentas sobre uma bancada improvisada.

— O que você quer hoje, amigo? — A educação nunca me faltava, precisava do ganha pão.

O visitante se calou, olhou esquisito para os lados e depois para a janela desnuda e suja.

— Naveguei com esse tal de Jon, um capitão britânico idiota que só vestia roupas finas. Mas, apesar disso, foi um dos melhores capitães que conheci durante toda a minha vida.

Por um momento pensei na possível idade do marinheiro e na possibilidade de sua “vida toda” ter sido tão longa quanto soava. Muitas vezes as histórias eram lorotas, mas precisava admitir que também havia algumas interessantes. Ele continuou:

— Passamos seis dias à deriva, foi o inferno sobre nós. Havíamos saído de uma cidade costeira depois de meia semana de descanso, bucaneiros tentaram nos interceptar sem sucesso. Somos a Marinha! — Ele disse de repente fervoroso. — Mas os danos nos atrasaram na viagem e se não fosse o socorro...

Com a máquina na mão, ajustei o restante das ferramentas e enchi com tinta preta um frasco pequeno como uma rolha. Apontei para uma cadeira e o marinheiro compreendeu meu sinal. Sentou-se.

— Aqueles desgraçados — dizia ele. — Eu só pensava na minha esposa, o meu amor. Nunca senti tanta saudade como naqueles momentos. Estava pensando e decidi levá-la comigo, mas claro que não em pessoa. Quero tatuar o nome dela, aqui! — disse ele apontando para o braço, próximo ao ombro.

Eu o encarei, pensativo por um breve momento, e soltei algumas palavras sobre coração, nome e um argumento pobre sobre simbolismo. Já estava acostumado àquela ladainha e à conversa mole, por isso liguei a máquina e logo comecei a rabiscar a tatuagem em seu braço.

— Eu nunca imaginei sentir tanta fome. Contei para você que o estrago foi na área de provisões? O que não queimou, explodiu ou se perdeu no mar. No primeiro e no segundo dia ainda havia os restos, mas depois estávamos quase comendo uns aos outros.

O marinheiro continuava a narrar a aventura enquanto eu preenchia as linhas de forma ágil, dando sombras para encorpar o desenho. Eu fingia me importar com os sofrimentos dele, mas não conseguia suprimir a ofensa que aquilo por vezes me causava. Havia experimentado uma infância na pobreza, então se havia algo que eu realmente conhecia eram a fome e a solidão. Em silêncio, eu guardava a aversão, principalmente por tolerar aquele tipo de pessoa que se repetia por ali mais do que qualquer um poderia imaginar... Como se, para gente como ele, estar naquele lugar, tatuar, fosse uma afronta, um ato de rebeldia ou qualquer coisa que não uma atitude superficial baseada na estética.

Fascinado pelo meu trabalho, o marinheiro agradeceu e pagou a mais.

— Isso é muito, senhor – falei, estendendo a mão com o dinheiro.

— Que isso, garoto. Você merece!

— Posso ao menos lhe pagar uma bebida, então?

Retribuí a generosidade com um drinque. Após uma dose e mais meia hora de palavras sobre o seu futuro incerto, o cliente partiu. Encostado no canto da mesa do bar, o hospedeiro se aproximou de mim e disse:

— Eles gostam de contar histórias, não é?

— Sempre sobre sofrimento ou essas baboseiras sobre peixes gigantes, monstros e orgias — bufei.

— Se nesse verão encher, vou precisar de ajuda.

— Movimento para você é movimento para mim — comentei, com um sorriso maroto.

— É, mas seus trocados não mantêm o teto sobre sua cabeça, garoto.

— Logo não vai haver teto — resmunguei.

— Ora! Se essa merda cair em cima de mim porque você fica falando essas coisas, eu volto do túmulo só para atormentar você! – Ele gritou em minha direção enquanto eu me afastava do balcão.

— Eu irei ajudá-lo no verão. Não se preocupe.

Enquanto mais clientes chegavam e acomodavam-se, uma moça e um rapaz se agilizavam para fazer o atendimento. Eram filhos prestativos e presentes, e o hospedeiro tinha sorte em tê-los. Eu não era do tipo exemplar, mas ao menos tentava não causar problemas; não que desse certo o tempo todo, mas não importa agora. Tinha vezes em que eu ouvia o hospedeiro falando de mim para uma e outra pessoa, normalmente repetia a mesma coisa: “Muito potencial engarrafado e largado em um beco qualquer”. Eu não entendia na época, talvez ainda não entenda, mas acredito que ele queria dizer algo bom ou possivelmente bom.

O hospedeiro me lançou um olhar pensativo.

— Estou aqui contigo, estou aqui — complementei, e ele sorriu.

Antes de voltar para organizar a bagunça da pequena sala, decidi curtir as boas vibrações que o horário do almoço trazia além dos cheiros maravilhosos que só naquela hospedaria seria possível encontrar: frutas vermelhas adocicadas escondidas sob uma massa delicada e frágil, o agridoce de broas curtidas ao rum, legumes cozidos com pasta de enxofre, amêndoas e passas no leite morno. Enquanto meus olhos corriam pelo salão, ao fundo do bar, acompanhado de notas roucas de resmungos, o hospedeiro tentava se embalar sobre as panelas.

 

“Seis Corões, de azuis ao rubro,

O bardo que floreia enquanto se escora,

O que é pago, pouco, tão pouco e não cubro,

Seis garrafas, a broa e esmola.



Oh! Taverneiro, copos d’ossos no balcão, bate! Bate! Bate!

Das portas ao chão, vozes ao ar, os passos o puxam!

Oh! Taverneiro, copos d’ossos no balcão, bate! Bate! Bate!

São só baderneiros, cerveja no ar, no chão se debruçam!

Tada tada dam… Hum huuum…”

 

Era o auge da noite. Sem confusão, estabelecimento cheio, comida sendo servida, bebidas consumidas aos montes, jogatinas para distrair e quartos ocupados. Enquanto limpava a mesa para servir o caneco de chope para um velho freguês, um som estridente soou pelo ambiente, fazendo com que até mesmo o músico, que improvisava acordes desafinados no canto do salão, se calasse.

Eu me apressei para juntar no chão os cacos do prato sobre a bandeja que eu havia derrubado. Logo o som voltou, assim como o blá blá blá quase ensurdecedor. Àquela altura, não apenas os marinheiros e frequentadores de costume ocupavam o lugar, como também o pessoal da região que buscava uma boa bebida e espaço para dançar.

Um velho inclinou-se um pouco sobre o balcão.

— Esse rapaz, não acredito que ele ainda está aqui — comentou. O hospedeiro me olhou de longe e voltou sua atenção para o caneco. Sua expressão ríspida escondia um pouco do cansaço, assim como tentava em vão disfarçar as amarguras da idade. — Dias atrás o vi ajudando o pessoal com as redes. Ele é forte, está em uma idade boa, deveria ir para o exército.

— Ele não é como nós, Edgar, nunca o aceitariam no exército. Não o aceitam em lugar algum — respondeu ao amigo. Ele apertou os olhos como que tentando entender onde o velho queria chegar; talvez estivesse apenas jogando papo para o ar, mas também o conhecia o bastante para saber que suas curiosidades quase nunca eram infundadas.

Edgar era um velho amigo do hospedeiro. Juntos, eles sobreviveram à guerra. Edgar, que ainda mancava sobre uma perna de pau, fora tenente, e o hospedeiro fora soldado. Nenhum deles se lembrava do motivo de terem voltado para aquela cidade. Para o hospedeiro, talvez fosse a falta de rumo depois de presenciar tantas atrocidades, uma vida pacata era tudo o que queria e era afortunado por ter recebido exatamente isso como herança, mas Edgar… Bom, talvez Edgar só quisesse ficar perto do amigo em que confiava e que no passado o salvara no campo de batalha quando ninguém mais tinha se importado.

O velho lacrimejou em segredo, virou o rosto para o lado apertando os lábios e arrancando um maço de fumo do bolso. Bufou.

— Maldita realidade — praguejou em seguida.

— Aqui ele está bem, não precisa levar mais uma surra do mundo. Só Deus sabe o quanto nós já apanhamos, não é?

— Eu me lembro, de como foi. Mas o que aconteceu com o Barão?

— Deus sabe, morreu de amargura — respondeu o hospedeiro em um tom seco.

Edgar pegou o caneco e deu uma golada longa, encharcando a barba grisalha e bagunçada. Em seguida soltou um arroto alto. Enrolou o fumo e o acendeu.

— Eu me lembro da Laura, lembro dela como se tivesse a visto hoje, ontem, sei lá, recentemente — bebeu outro gole. — Você lembra dela? A negra era forte, sabe, de gênio, e também sua postura, já sabemos d’onde vem a herança. Diziam que ela era ruim e por vezes arranjava confusão para o Barão.

— É. Mas ninguém nunca soube de onde ele veio, sabe, Laura foi a segunda mãe. Até onde se sabe. Ela era durona. — O hospedeiro soltou um breve suspiro enquanto observava a bagunça da agitação do salão.

— Quem sabe um dia ele terá uma chance. As coisas estão mudando por aqui.

— Não parecem mudar, meu amigo. Vejo muita ignorância na rua, parece que o povo gosta de ser abestado — comentou o hospedeiro, cabisbaixo. Sua descrença era mais do que evidente.

— O problema não é o povo que está na rua, mas quem criou esse povo e como estão criando as crianças, entende? Nós começamos a mudança, não foi? Demorou, mas começamos. Nossa parte já acabou, agora cabe aos nossos filhos fazerem as coisas acontecerem. Isso pode ser um processo ou um progresso, não sei. Só torço para que essas pessoas saiam da sombra, vejam além dos seus caroços e que há luz lá fora, entende? O garoto precisa disso. Seja como for… — Edgar finalizou ficando um momento em silêncio; seus lábios até se mexeram, mas não havia mais nada a ser dito.

Após se calar, exibiu um pequeno sorriso. Empurrou o caneco de volta para o hospedeiro, tirou alguns trocados do bolso e bateu-os contra a mesa. Pegou um novo caneco, agora cheio, e repetiu o gole como se molhar a barba fosse uma tradição.

Logo se ouviu uma discussão que interrompeu a conversa entre os dois. O velho se afastou rapidamente do balcão, indo em direção ao amontoado de pessoas do outro lado do salão. Edgar empurrou quatro ou cinco para chegar ao meio da muvuca e lá ele me viu trocando ofensas com um sujeito mal-encarado, o qual, mesmo que não vestisse nenhum uniforme, tinha uma postura que o denunciava como um militar. Um militar em descanso, mas procurando confusão.

— Você viu que na…

— Viu o caralho, tição! — Ele me interrompeu enquanto eu tentava explicar. – Não lhe cabe tanta ignorância e descaso com a vida, apenas faça o seu trabalho direito que para isso você devia prestar! — disse o sujeito com o dedo apontado na frente do meu rosto.

Ele sobrepôs o corpo sobre o meu, como se ganhasse vantagem por conta de seu tamanho. Naquele momento eu não pensei nas suas intenções, não sabia se ele iria me agredir, tentar me matar ou se estava apenas exibindo sua posição social, mas eu havia me criado por um bom tempo nas ruas, calejado pela violência e, ao contrário do que ele esperava, ele não ia me intimidar.

— Eu não tive intenção. Foi seu amigo que me empurrou! — tentei, em vão, argumentar para evitar confusões: meu histórico com o hospedeiro era longo e a última coisa que eu queria era decepcioná-lo.

— Empurrou? Agora vai jogar nas costas dos outros? Assuma a responsabilidade ou eu faço isso por você! — O tom alto e arrogante trouxe ainda mais atenção para onde estávamos.

Porém Edgar interveio.

— Calma, calma! Não tem motivo para confusão — disse o velho.

— Isso não lhe diz respeito — retrucou o militar raivoso.

Edgar se colocou entre nós, mas o sujeito, sem hesitar, o empurrou em minha direção. Eu o agarrei e o segurei com toda a força, ambos aos tropeços, quase indo ao chão, mas consegui evitar um doloroso tombo.

No meio de toda a confusão, um desconhecido se intrometeu andando para a frente da multidão e, de repente, surgiu com um revólver empunhado com firmeza em mãos. Uma onda de pânico e surpresa percorreu o salão, pois, mesmo que uma arma não fosse inimaginável na discussão, ninguém esperava que a mira seria apontada para um militar.

O homem com o dedo no gatilho encostou a ponta da arma na cabeça do encrenqueiro e, antes que seus amigos se mexessem para fazer qualquer estupidez, sacou uma outra pistola, apontando-a para eles.

— Todo mundo está aqui para comer, beber e rir — disse o homem em um tom severo. Sua voz ecoou pelo salão silenciado pelo trauma das armas e pelo medo do que poderia acabar se tornando aquela confusão. A voz do homem era poderosa, imponente, aveludada e, apesar de parecer jovem, ele mantinha a firmeza de alguém experiente, fosse em confusões ou no manuseio de armas de fogo. — Se vocês querem confusão, é nas docas que devem ir. — O militar se atropelou com as palavras e finalizou com uma bufada de raiva.

— Senhores, por favor, não precisamos disso aqui! — exclamou o hospedeiro.

O desconhecido puxou o cão; os olhos do militar e de seus amigos se arregalaram como os de um bicho assustado.

— Vocês escolhem — intimou o homem, com a arma firme na mão.

Os encrenqueiros se encolheram e desviaram os olhares, após me darem uma dura encarada, e saíram do estabelecimento, o último batendo a porta com força. Levou alguns segundos até todos desistirem de entender o que havia acontecido e logo tudo voltava ao normal.

A filha do hospedeiro, Susane, acalmava a minha tensão com palavras de consolo enquanto eu sentia minha pulsação, quase descompassada de tão rápida, sob os olhos. Estávamos encostados no balcão, bebendo um pouco de água e uísque, quando Edgar se aproximou.

— Não podem dar títulos a um homem que ele já se acha superior, fedelho merdinha — ele disse.

— Não precisa de títulos para um homem branco se achar superior — comentou, em um tom triste, a moça. — Você está bem, Eli?

Não consegui responder. De qualquer forma, acredito que como meus punhos estavam fechados, ficava visível a minha frustração. O estranho, aquele que encerrou de forma abrupta a discussão, se aproximou de nós, recebendo um olhar atento do hospedeiro que não conseguia decidir se o repreendia por estar armado ou se agradecia por ter evitado que a confusão tomasse proporções maiores.

— O que posso lhe servir? — perguntou, achando um meio termo.

— Cerveja — respondeu com a voz rouca.

Ele se sentou ao nosso lado. Edgar engordou os olhos sobre o revólver visível no coldre e engoliu em seco, tanto a pergunta que lhe veio à boca como também os pensamentos. O homem primeiro o fitou, depois a mim, mas eu permanecia cabisbaixo, perdido em pensamentos.

— Se impor é um risco, mas só assim você será realmente livre.

De início não dei atenção, mas aquelas palavras me consumiram aos poucos, por completo. Então me virei para ele e disse:

— Eu estou cansado dessa merda.

O hospedeiro, triste, sentiu uma nuvem nebulosa de medo, angústia e frustração lhe cobrir a cabeça. Ele temia por mim, pois havia me criado como se fosse seu filho. Logo a mim, um ser tão diferente naquele mundo, mesmo, no fundo, sabendo que todos somos iguais; todos somos carne e ossos, sendo apenas pó no final.

— Tomas — se apresentou o homem, estendendo a mão aberta para mim.

Eu retribui o cumprimento dizendo meu nome e apertando a sua mão. Em seguida ele saudou Edgar, Susane e, por fim, o hospedeiro.

— Então, você está só de passagem, Tomas? — perguntou o hospedeiro.

— Digamos que sim, em uma missão.

— Você é do exército? — As palavras de Edgar surgiram como uma indireta sobre o revólver, apenas ele não percebeu.

— Sou a terceira geração de imigrantes Zulu, mais ao sul. Não me querem naquele lamaçal e eu não vou derramar uma gota de sangue por burgueses, a não ser que eu seja bem pago. Sabem como é, guerra aqui e ali, mas tudo se trata de burocracia e poder, eles que se fodam.

O hospedeiro encheu outro copo e o entregou para Tomas, observando-o beber e apreciar cada gole. Eu ainda estava desgostoso e me recuperando, mas ele, o homem que havia acompanhado o meu crescimento, me conhecia bem demais para saber que momentos assim, de tensão, carregavam a minha mente com inúmeros pensamentos, às vezes ideias e nem sempre boas.

— Preciso voltar! — disse Susane, acariciando minha face. Ela então puxou meu queixo para si com cuidado e me lançou um olhar de empatia. — Venha, preciso da sua ajuda! — Nós nos afastamos enquanto os senhores compartilhavam algumas histórias entre tragos.

— Obrigado por defender o garoto — disse Edgar. — Ele é um bom rapaz, merece mais do que isso.

— Ele vai ser massacrado aqui — disse Tomas.

— Ele se vira — respondeu o hospedeiro. Tomas soltou um sorriso frouxo.

— Estou em uma viagem de negócios. Sabe, ele poderia fazer um bom dinheiro, talvez se virar de uma forma melhor.

— Negócios? Você parece muito jovem para negócios sérios. O que é? Caça? — Edgar provocou. Eles se fitaram.

— É. Caça — soltou Tomas entredentes.

Edgar viu ali uma oportunidade para eu me libertar. “Quem sabe experimentar o mundo não lhe traga uma oportunidade melhor, uma vida melhor?”, pensou, ingênuo. O amigo, que o observava, parecia ter entendido o destino daquela conversa.

— Não gosto da ideia. Aqui ele não tem muito, mas lutamos pelo que temos e ele está seguro.

Edgar torceu a boca.

— Seguro — sussurrou, desdenhando enquanto se deleitava novamente com o caneco cheio. O hospedeiro o encarou de canto e Tomas apenas o observou.

Algumas horas se passaram, a agitação continuou, mas quando tudo se acalmou, tarde da noite, Tomas se despediu do hospedeiro e de Edgar. Ele se afastou pelo salão, porém antes de sair trombou intencionalmente comigo no momento em que eu limpava uma mesa.

— Soube que você é um artista — ele comentou.

— Eu faço tatuagem e também pinturas.

— Olha só! — disse em bom tom. Arregaçando a manga da roupa, ele exibiu o braço musculoso com longas e grossas linhas que serpenteavam o antebraço em um tom escuro levemente azulado. — Fiz essa na Ásia, estava de passagem com um grupo de mercadores. Doeu na alma.

A tatuagem era fantástica! Não tinha um padrão exato e nem as linhas eram perfeitas, mas encantava. Contemplei a pintura o máximo que pude.

— É incrível! Parecem ondas! E essas curvas, elas são como serpentes?

— São, sim. Encontrei o maior polvo do mundo e sobrevivi ao seu ataque, quase atracando lá na China. Dizem que era um Daihua — comentou, entusiasmado com as próprias palavras.

Ao passo que eu ouvia as suas palavras, automaticamente eu pensava: “Mais uma história”.

— Gostaria de ir até lá um dia? Quem sabe o que pode aprender? — Tomas me fitou.

— Um dia. Não ganho muito aqui, é difícil guardar tostões para viajar.

— Imagino, esse lugar é uma merda.

— É minha casa!

— Não me referi à pousada, eu meio que gostei daqui. — Ele aproximou-se de mim. — Olha, estou nessa missão. Vamos para o norte, em alto mar, é um plano meio maluco, mas a recompensa é boa.

— O que vocês irão caçar?

— Como sabe que é caça? — retrucou ele apertando os olhos.

— Imaginei, você tem uma tatuagem de cordas enroladas em uma lança, ou arpão, e uma andorinha puxando; se não fosse caçador de animais, seria no mínimo de tesouros e essas bobagens. — Tomas riu e colocou a mão sobre meu ombro.

— Criativo, eu gosto disso. Mas, você quer mesmo saber?

— Não estou dizendo que vou, mas gostaria de saber, sim — respondi, curioso.

— Certo. Um velho rico contratou uma tripulação toda, pagando bem, para caçar um dragão!

Eu o encarei com a sobrancelha arqueada, descrente e confuso por um momento, tentando compreender a brincadeira.

— Está brincando comigo?

— Não! Não que ele realmente tenha contratado nossa tripulação por esse motivo, teve toda uma história para não afugentar covardes ou criar alardes sobre sua loucura, mas tudo bem, todos reagem da mesma forma.

— Mas se dragões voam, por qual motivo ficariam no mar?

— Certo, — deu uma pausa, afastando-se e contendo a risada com a mão sobre a boca — quase da mesma forma. Essa pergunta é séria? — ele retrucou.

— Bom, essa viagem é séria? — respondi desconcertando Tomas.

— Há uma lenda sobre ele, é um dragão-marinho, dizem que ele voa, sim, mas vive no oceano. Há muitas evidências sobre ele, assim como sobre tantas outras criaturas que foram encontradas ou ainda estão ocultas… você não é cético, é?

— Está certo — respondi em tom debochado. Já havia curtido uma ou outra história de criaturas fantásticas que foram descobertas por caçadores ou simplesmente surgiram chocando o mundo, por assim dizer, mas um dragão parecia bizarro demais.

— Não estou pedindo para você acreditar, mas já pensou? Nós vamos até lá, ele quebra a cara e voltamos para casa com a burra cheia.

— O que quer dizer?

— Seja como for, são três meses de viagem, eu sei que é maluquice, mas tem um ricaço pagando muita gente para isso. Vamos encher os bolsos! Esse é o acordo.

— Você é louco! — exclamei com meio sorriso.

Todos os dias eu conhecia dezenas de histórias. Iam de baleias gigantes a uma quantidade absurda de outras criaturas, mas nunca havia ouvido falar de um dragão no mar.

— Mas um rico, mesmo que seja louco, sabe muito bem que tendo dinheiro ninguém irá desrespeitá-lo. Estamos na doca baixa, O Arco — disse Tomas. — Essa é, literalmente, uma chance de ouro. A escolha é sua, mas um braço forte viria bem a calhar com as tarefas.

Eu ri. Apenas uma risada seca e descrente.

Antes de se despedir, Tomas ainda completou:

— Ah! Eu quero me tatuar antes de partir! — E saiu pela porta, deixando o rastro das últimas palavras.

Após isso, eu continuei os meus afazeres, mas agora me sentindo um pouco perdido e sonhador com a conversa que acabava de acontecer.

 

Demorou dois dias para que Tomas retornasse à pousada.

Naquela manhã ele vestia-se diferente da noite em que havia chegado, causando quase uma confusão para o hospedeiro ao tentar reconhecê-lo. De longe Susana observou o homem cruzar o salão, ele esbanjava um olhar imponente, a barba estava curta e bem-feita. O cabelo arrumado, penteado para trás, trazia ondas sutis para a nuca e o suspensório segurava a calça azul grossa junto a uma regata branca. Os passos firmes da bota estenderam-se até o balcão, onde o hospedeiro arrumava os canecos.

— Bom dia, senhor!

— Olá, Tomas! — fitou o freguês. — O que posso lhe servir hoje?

— Apenas um café será de grande valia. Pode, por favor, chamar nosso artista?

De imediato o hospedeiro pegou um bule que descansava sob o balcão e despejou o líquido negro dentro de um copo, entregando-o para Tomas e, logo em seguida, apontando para um pequeno pote de vidro preenchido por açúcar. Porém o homem, com um gesto, recusou o complemento.

— Você vai tatuar? — questionou, ainda com o bule na mão.

Não foi preciso o hospedeiro se dar ao trabalho de ir até mim, pois naquele momento eu invadia o salão carregando baldes com frutas frescas. Passei pelos dois, que conversavam, sem sequer dar atenção.

— Vamos partir essa noite, por isso quero registrar algumas lembranças da viagem até agora — Tomas dizia ao mesmo tempo em que eu me esforçava para chegar à cozinha. Cruzei todo o balcão, por trás do hospedeiro, e desapareci depois de uma porta.

— Muitas aventuras? — O hospedeiro lustrou dois copos e depois serviu uma dose para si mesmo. — Já naveguei algum tempo — virou a primeira e serviu mais uma dose. — Durante a juventude passei alguns anos na marinha, não havia glórias, apenas trabalho pesado — deu uma pausa.

Tomas empurrou o copo vazio e puxou-o após estar cheio novamente. O café preto e forte encharcava seus lábios que apreciavam o sabor.

— Você já lutou? Veterano. — perguntou Tomas.

— Uma vez, contra o Kano, traficantes de escravos. Quando as primeiras leis surgiram, a marinha apoiou fortemente a queda do mercado clandestino, foi complicado.

— Imagino que tenha sido, essa merda sempre é.

Saí pela porta.

— Está tudo pronto! – anunciei.

O hospedeiro ofereceu outro copo de café para Tomas, e logo pediu licença e retirou-se para a cozinha.

— Vamos fazer essa pintura? — Passei pelo balcão em direção à minha pequena sala, convidando-o para entrar.

Enquanto eu arrumava o resto das coisas, Tomas tirou uma latinha do bolso e um couro enrolado em papel, abriu a lata com cuidado. Eu o espiei de canto de olho e fiquei surpreso ao notar a gentileza com que ele tratava o material em suas grandes mãos surradas.

Tomas tirou da lata uma porção de fumo, embolou contra a mão e com a outra sacou um pedaço do papel. Enrolou tudo junto, levou o fumo até a boca e ainda de dentro da lata tirou um pequeno palito. Do outro bolso puxou um pedaço de borracha oval, mergulhou o palito nela e raspou-a repetidamente contra um lado, visivelmente coberto por camadas ásperas, da lata. O palito acendeu-se e rapidamente queimou o fumo.

— O que você quer pintar? — perguntei.

— Olha! — O homem ajeitou o charuto na boca, contraiu o olho esquerdo incomodado com a fumaça e, após uma breve tragada, rolou o charuto para o outro canto da boca. — Quero um dragão desse lado do peito — apontou para seu lado esquerdo. — Também quero uma ilha nesse braço — disse, agora apontando o antebraço direito. — Com a palavra Honolulu! — finalizou, com um sorriso no rosto.

Eu balancei a cabeça em concordância. A ideia era interessante e conhecer sobre novas culturas sempre me empolgava. Ele trocou algumas palavras sobre seus significados enquanto eu, rapidamente, organizava o material e começava a executar o trabalho. O pigmento aparecia forte na pele macia e parda de Tomas, as linhas aos poucos ganhavam forma e, sem exibir qualquer vestígio de dor, ele mantinha o semblante tranquilo, porém um tanto quanto pensativo.

— Qual sua ambição? — Ele perguntou, curioso.

— O que quer dizer?

— Como o que quero dizer? Quero saber se você quer fazer algo na vida, além de limpar mesas e ganhar trocados por desenho.

— Quero viajar para aprender mais com outros tatuadores.

— Esse é o tipo de coisa que se aprende assim?

Eu o encarei sem esconder o prazer de poder contar uma história e não apenas ficar ouvindo. Eu podia não ter tido tantas aventuras pelo mundo, mas é curioso como o mundo chegava constantemente até mim. Já havia conhecido monges de templos que ficavam em montanhas que eu nem sabia que existiam, muito menos que poderiam ser tão altas. Havia aprendido a cultivar ervas com líderes tribais que vinham fechar acordos comerciais no porto e traficavam espécies de regiões das quais eu nem sequer conseguia pronunciar o nome. Não se tratava apenas da arte, quando as pessoas entravam na minha sala e se sentavam para a tatuagem, era como um ritual de vulnerabilidade, solidariedade ou qualquer coisa assim, as pessoas apenas compartilhavam.

— Eu conheci um artista do Japão, ele estava de passagem.

— Japão, é?

— Sim! Ele usava um bambu enfeitado com agulhas de ossos na ponta e ainda era rápido com as mãos. Ele me contou que, de onde ele veio, chama-se a técnica de tebori, mas não era algo único do Japão.

— Ossos? Parece o que os polinésios usavam. — Ele perguntou curioso.

— Sim, ossos pequenos, quase filetes com pontas afiadas. Não imaginei que você soubesse disso.

— Eu não rodo por aí sem fazer perguntas, você apenas ouve, eu preciso perguntar ou não vou saber de nada. Mas, voltando ao japonês, por que não pediu para ele ensiná-lo?

— Ficou pouco tempo, não falava muito a nossa língua — Tomas pediu uma pausa rápida para enrolar outro fumo. Logo continuamos.

— Se você tiver dinheiro, meu querido, poderá ir para onde quiser, aprender o que quiser. E quer saber? Tem muito lugar por aí em que ninguém liga para a sua cor. Aqui você nunca será alguém.

— O que você sabe? — questionei, incomodado com as palavras. Conhecia bem a minha realidade, não precisava de alguém para feri-la ainda mais. Eu tinha um punhado de esperanças, sonhos de que um dia tudo poderia mudar, mas, ainda assim, eu sabia que minhas chances eram poucas e, mesmo que os costumes primitivos não fossem um problema dentro daquela sociedade estúpida, em que a economia também não ajudaria ninguém a sair da pobreza. A cidade era infestada de corruptos — como ratos saindo do bueiro trazendo a peste, eles contaminavam tudo e todos, favorecendo seus próximos, de classe e cor.

— Eu sou mestiço, acha que não entendo? — Tomas retrucou em alto e bom som. Eu o encarei, mas não foi preciso proferir palavras para ter a certeza de que ali nós havíamos entendido um ao outro.

Até eu finalizar o trabalho, mais algumas palavras foram trocadas, em geral sobre o mundo e possibilidades interessantes. Ele tentava descaradamente me animar com as ideias que vinha plantando desde o começo da conversa, e estava dando certo. Tomas ficou admirado com a arte pronta, elogiando-a algumas vezes. Saímos lado a lado para o salão no horário do almoço e, apesar de não poder ficar, ele perguntou se poderia levar algo para comer. Enquanto o hospedeiro enchia uma trouxa com broa e frutas frescas, ele veio novamente até mim.

— Boa sorte, Eli. Espero que um dia sua liberdade seja real e sua arte seja contemplada.

— Obrigado! — respondi cordialmente. — E boa sorte na sua caçada.

Tomas se aproximou tocando gentilmente meu ombro e levando a mão ao meu pescoço. Ele exibiu um sorriso largo e se afastou. Recebeu a comida, jogou a trouxa nas costas e partiu.

 

O dia passou rapidamente e a noite cobriu o porto de Meradosia com um céu recheado de estrelas. O salão já estava cheio antes mesmo de escurecer, mas lotou ainda mais. O hospedeiro servia as bebidas que pareciam ser pedidas sem descanso. “Vou precisar de tanques ao invés de barris”, ele pensou. Susana me ajudava com as mesas lotadas e dois outros ajudantes adiantavam os trabalhos na cozinha. A cidade estava tomada pela euforia, pois o dia seguinte era a folga geral, o tal dia santo, onde todos aproveitariam para pecar.

Por alguns segundos fugi da agitação esgueirando-me por entre os corredores para o fundo do bar, desejando respirar um ar só meu ao menos por um momento, mas no caminho do corredor para o depósito esbarrei meu corpo contra o de Susana.

Em outro canto do bar o hospedeiro quase perdia a voz a cada vez que precisava pedir para trocarem os barris e, do corredor onde estávamos, era possível ouvir a sua voz falhando. Ela me encarou, com o cabelo suado colado na testa e a respiração ofegante. Fitei de volta seu olhar encantador.

— O que foi? — perguntei.

— Tem algo na sua cara.

— Quê? — Eu não havia compreendido.

Ela aproximou-se de mim devagar no corredor estreito, onde não passaríamos com folga caso caminhássemos lado a lado, e levou a mão até meu rosto, puxando dele um pedaço de massa crua.

— Como isso veio parar aqui? — perguntou ela, confusa.

Desviei o olhar para o chão, torcendo a boca, e respondi:

— Eu estava na cozinha tentando aprender a fazer a broa de batata, acho que claramente não tenho talento para isso.

— Eles mandaram você amassá-la e jogá-la para cima?

Confirmei apenas com um gesto e ela retrucou com uma gargalhada doce e gostosa. Sua mão deslizou sobre meu rosto cansado, e então, aproximando-se mais, ela roubou um beijo que logo se tornou intenso. Eu apenas deixei acontecer, curti o sabor de seus lábios e a pressão dos nossos corpos um contra o outro. Respirei fundo, absorvendo o perfume do corpo dela. Enquanto a música ecoava pelos corredores, apertei sua cintura e em resposta fui pressionado contra a parede; com os corações em chamas, cambaleamos até o depósito e secretamente trocamos algo a mais do que beijos. No curtíssimo espaço de tempo que tivemos, apenas as carícias foram suficientes para nos satisfazermos naquele momento, mas juntos almejávamos o que a noite ainda poderia nos proporcionar.

Susana era uma pessoa especial, por vezes tínhamos esses pequenos momentos de paixão, que acabavam rápido como começavam. Talvez fosse a maneira como nossa relação aflorou talhada sobre uma forte amizade ou simplesmente pela confiança e amor que sentíamos um pelo outro. Ela me empurrou, sem brutalidade, apenas me afastando um pouco, como se tentasse resistir. Calada, apenas sorriu e correu para dentro do bar com algumas especiarias nas mãos, ao passo que eu observei o xadrez esvoaçante de seu vestido desaparecer pela porta. Por um breve momento permaneci extasiado, aos suspiros bobos, mas logo fui ajudá-la. Sem tempo para mais papo furado, as tarefas continuaram em ritmo frenético e animado.

 

Mais tarde naquela noite, com o salão ainda cheio, a porta foi aberta com violência, dando lugar aos passos de alguns homens de cara fechada. Entre eles estava o militar arruaceiro que caminhava até o balcão de forma imponente e encarava, com um olhar frio, a todos por quem passava. Os companheiros vinham logo atrás e todos sentaram-se próximos ao balcão, começando a bebedeira com destilados puros. O hospedeiro, desconfiado, observava-os e pediu para que Susana me avisasse, e, principalmente, me alertasse, para que eu não saísse das mesas do fundo, evitando assim qualquer confusão.

Eu não poderia discordar, então obedeci.

Após a sexta garrafa de conhaque o encrenqueiro chamou pelo hospedeiro.

— Aquele moleque, cadê ele? — Seu hálito fétido deu ainda maior aversão ao homem que se obrigava a ser cordial com o freguês indesejado.

— O garoto é de bem. Está trabalhando duro essa noite.

— Trabalhando? — Ele olhou em volta e do outro lado do salão me flagrou servindo uma mesa. O hospedeiro levou a mão ao braço do militar, mas sem indícios agressivos.

— Sem confusão, por favor! — pediu.

O homem desdenhou o argumento e afastou com violência a mão do hospedeiro. Seguido pelos amigos, atravessou o salão empurrando quem estava no caminho. Eu ouvi algumas reclamações vindo ao longe e quando me dei conta, tarde demais, fui agarrado pelo colarinho. Eu me debati, mas não era tão forte quanto ele, então senti meu corpo ser empurrado por alguns metros até bater com força contra a parede. Depois ele sacou da cintura uma pistola e a pressionou contra meu queixo.

— E agora, seu verme do caralho? — falou, cuspindo, consumido pelo álcool e pela insanidade.

Susana gritou ao aproximar-se e ver a cena, e todos do salão reagiram se afastando da confusão, já temendo pelo pior.

— Eu vou acabar com a sua raça! — Ele exclamou, gritando novamente.

O hospedeiro surgiu no meio da bagunça e puxou o militar, que foi forçado a me soltar. No entanto, dois dos amigos do encrenqueiro foram, em vão, para cima do hospedeiro que revidou com socos. Susana correu em minha direção para me ajudar e alguns desconhecidos, que já estavam no bar, reagiram contra o grupo de valentões.

Nesse meio tempo que consegui me recuperar, ao levantar fitei o militar com a pistola na mão, apontando-a para mim. Rapidamente, empurrei Susana para longe e me joguei contra ele, ambos caindo no chão. Mas um disparo foi feito, dispersando a multidão.

Eu o golpeei algumas vezes, mas, não sendo páreo para a força do rival, em troca recebi um soco no queixo, senti meu maxilar vacilando e fui chutado para longe. Ouvi gritos vindos na direção de Susana e a vi ajoelhada sobre o hospedeiro. Ao olhar de volta para o militar, notei-o tentando se levantar, então rolei para o lado e agarrei duas garrafas que estavam no chão. Quando meu agressor ficou em pé, atingi-o com uma delas, porém, mesmo atordoado, a pistola buscou novamente por mim e disparou mais duas vezes, agora acertando a parede. Quebrei a outra garrafa na mão dele que soltou de imediato a pistola, mas que agilmente sacou uma faca e avançou outra vez contra mim. Nós rolamos por um metro, trocando golpes, até que paramos sob uma poça de sangue. As pessoas não entenderam o resultado, os encrenqueiros dominados gritavam pelo amigo esticado sobre mim.

Com esforço e sentindo dores por todo o meu corpo, tentei, com cuidado, me mexer e usei o que me restava de forças para empurrar o militar de cima do meu estômago. O corpo inerte rolou para o lado expondo para todo o público o seu semblante de terror e a garrafa cravada fundo no estômago. Eu me ergui zonzo; os homens que buscavam por briga correram para acudir o amigo, gritando barbaridades contra mim, e um deles tentava argumentar com a multidão justificando a cena e incriminando-me.

Avancei rápido até Susana.

— Como ele está? — perguntei nervoso, vendo meu velho amigo no chão.

— Não sei — disse ela, chorando. — Acho que a bala atravessou.

Os apitos das autoridades aproximavam-se quando o hospedeiro segurou firme na minha mão e tossiu duas vezes, a segunda seguida de muito sangue.

— Fuja! A polícia... — Com esforço, ele tentou continuar. — Vão culpar você.

— Mas ele não fez nada! — exclamou Susana.

— Um soldado morto. Eles não vão perdoar! Por favor….

No fundo, sabíamos da verdade: eu não precisava cometer um erro para ser julgado, bastava estar por perto. A moça passou a mão sobre meu rosto, expressando o amor que compartilhávamos e que não cabia em palavras. Suas lágrimas ardiam tanto pela dor do pai ferido quanto pelo sofrimento que ardia dentro de mim. Sequei rapidamente as suas lágrimas e me levantei, um pouco atordoado, mas muito aflito e desesperado. Sussurros e cochichos me favoreceriam, mas a multidão também sabia da mesma verdade cruel. Por respeito ao dono da pousada e por toda a história que viveram ali e ao meu lado, mantiveram o silêncio e abriram espaço entre as mesas.

Avancei com pressa para o quarto e peguei apenas um agasalho e alguns trocados, passei pela porta e Susana me agarrou de surpresa.

— Você sempre quis sair daqui, Eli, nós sempre quisemos — Ela me apertou forte.

— Eu vou encontrar você, eu prometo — falei tentando confortá-la mesmo sem saber se aquilo faria sentido em meio ao caos. Susana arrancou a pulseira que vestia em um braço, um antigo presente da sua falecida mãe, um objeto simples de fio trançado e com uma pequena esfera de madeira escura, um símbolo de amor e confiança. Ela me entregou a pulseira, escondendo-a em meu punho fechado. Susana me encarou uma última vez e me beijou antes de correr de volta para o salão.

Logo, a polícia já tomava conta do salão. Sem pestanejar, eu me esgueirei pelo canto da janela até uma calha, atravessei pelo telhado dos vizinhos correndo entre vigas até alcançar uma saída para uma viela. Minha respiração estava ofegante e meus músculos queimavam, aos passos brandos eu chorava pelo passado ter me punido sem eu nem sequer entender os motivos e chorava pelo presente também ter me traído. Meu coração partia-se ao pensar se eu suportaria o que ainda estava por vir.

 

Parte II

As ruas cobertas por um fino manto de água deixado pela garoa da madrugada exibiam reflexos turvos das luzes dos postes, o cheiro confuso das madeiras e tijolos encharcados e a nostalgia do clima ruim misturavam-se ao odor nauseante do porto. Pelos cantos, mendigos se amontoavam fugindo dos baderneiros ou autoridades, buscando apenas um mínimo de paz em suas mentes solitárias e atormentadas. Os animais de rua circulavam por todos os lados, aproveitando a ausência das pessoas que lhes causavam apenas confusão e alarde.

Eu corri por entre algumas vielas escuras, tentando me ocultar o tempo todo, cruzei quase toda a extensão do Mercado Maior acompanhando a margem do porto, meu coração palpitava loucamente e meus pensamentos se perdiam no meio da emoção, ansiedade e desespero. Calafrios subiam pela minha espinha cada vez que eu tentava assimilar o que havia acontecido e quanto mais eu corria, mais eu sentia que voltava ao invés de fugir.

Meu peito ardia, mal conseguindo acompanhar minha respiração, a todo momento parecia que alguém me seguia e com esse pensamento cai mais de uma vez ao tentar espiar a retaguarda vazia. Não demorou para que os sons das sirenes e apitos dos oficiais voltassem a soar, agora claramente se dispersando pela região. “Eles encontraram o corpo e agora perseguem o assassino”, eu pensava sem parar.

“Assassino.”

Atravessei pela parte de dentro do Centro, onde incontáveis barracas vendiam frutos do mar e especiarias. Atordoado pelo fedor, contornei boa parte da praça que ligava as ruas principais. Passei pela Catedral da Orquídea e, de longe, vi os oficiais vindo em diferentes direções ao meu encontro, no entanto me apressei mudando o rumo e, sem muita escolha, voltei para o porto. Tentei desviar das docas, mas logo os apitos e sirenes ficaram mais altos, acompanhados por um novo som de latidos raivosos. Apertei o passo e, ao tentar pular sobre uma pilha de caixotes que impediam a passagem por uma viela mais próxima, cai e rolei sobre latas e armações metálicas, resquícios de lixo. O barulho não foi audível a longa distância, mas foi o suficiente para me entregar aos cães.

Tentei levantar o mais rápido que pude, mas caí sem resistência ao sentir uma dor intensa na perna. Rolei de um lado para o outro e me esforcei para ver o que estava acontecendo: um pedaço de arame havia se enroscado e me perfurado, mas com a adrenalina não senti o ferro rasgar minha carne ao atravessar a panturrilha. Eu me contorci ainda mais para não gritar de dor e senti um aperto no peito, como uma forma de decepção, e medo; arrastei-me até uma parede, onde escorei meu corpo e permaneci sentado, e, com muito esforço, tentei puxar o arame para fora de minha pele, em vão. O metal parecia cravar mais fundo, rasgando minha pele de forma brutal.

“Não aguento mais!”, pensei comigo enquanto mordia os lábios para não gritar de dor. Pequenas gotas de chuva batiam sobre minha nuca enquanto, cabisbaixo e encostado naquela viela, eu desistia da minha fuga e da minha liberdade.

Soltei um suspiro pesado, depreciando aquele momento em que tudo parecia dar errado, inclusive eu.

Do meio da escuridão surgiu um homem, com passos firmes e ágeis, que pousou sua grande mão sobre meu ombro, me fazendo estremecer com o choque da surpresa. Ao levantar meu rosto para encará-lo, reconheci-o, sendo a última pessoa que eu esperava ver.

— O que está fazendo aqui? – Ele questionou.

— Eu… E… — Mas me faltaram palavras.

Tomas observou o ferimento, aproximando-se mais e olhando atentamente a minha carne exposta. De súbito, sua atenção foi tomada pelo som dos cães e oficiais e seu semblante, amargo e raivoso, fechou-se. Ele se voltou para mim novamente e disse:

— Você já deve imaginar, mas isso irá doer e você não poderá gritar.

Eu confirmei com a cabeça, agarrando uma lasca de madeira que estava jogada ao meu lado, no meio de todo o lixo, e a mordi, como se fosse um pedaço de fruta madura. Praguejei no momento em que Tomás segurou com firmeza a minha perna e agarrou com força o pedaço de ferro, deixando, sem querer, um chiado escapulir de meus lábios, mas ocultando o grito histérico que fui sentenciado a engolir quando ele puxou o arame. Sem pestanejar, ele arrancou um pedaço da própria camisa e a enrolou em volta do ferimento, dando um nó tão firme que minha perna inteira ficou dormente.

Novamente o som dos oficiais soou, agora mais alto, mais perto.

— Eu não… Ele morreu! — exclamei baixo em meio a soluços e lágrimas.

— Ei! Falaremos disso depois, agora eu preciso que você tente se levantar — disse ele. Puxou meu braço sobre seu pescoço e ergueu meu corpo para cima. — Não podemos parar!

Eu fitei aquele homem, o qual eu mal conhecia, sem entender porque estava me ajudando outra vez. Ele me encarava com o olhar sério, pequenos traços deprimidos que se ocultavam no interior de seus olhos, como se visse ali, em algum momento, um pedaço de si, da sua história e da sua dor.

— Não importa o quanto doa, não podemos parar. — E sem saber o que dizer, apenas concordei com um gesto e continuamos a andar.

A chuva engrossou e o barulho passou a nos enganar sobre o quão próximos estavam os apitos, sirenes e latidos, colocando-nos à mercê da nossa própria sorte. Caminhamos silenciosos, com o máximo de cuidado possível, até o final da viela. Tomas certificou-se de que o caminho estava livre, no entanto, de longe, ele flagrou algumas luzes vindo em nossa direção. Segurou firme meu braço e eu balancei a cabeça sinalizando que estava preparado. Corremos o mais rápido que aguentei em direção a um beco que serpenteava por algumas construções e resultaria na rua principal paralela ao porto. Avançamos, tentando nos ocultar entre as sombras dos postes e entre a luz da lua, que passava falhadamente por entre uma sessão e outra de nuvens carregadas.

Sem percebermos, um latido nos tomou de surpresa e avistamos dois cães vindo em nossa direção, e, assim como Tomas, eu sabia que não conseguiríamos correr rápido o suficiente para nos livrarmos deles. Uma das muitas construções abandonadas ao nosso redor mostrou-se como a única opção, então atravessamos meia quadra até chegarmos ao edifício. As paredes esburacadas não dificultaram a nossa entrada, diferentemente dos restos caídos em ruínas que se espalhavam pelo chão e pela escada despedaçada.

Com cuidado, caminhei sob o telhado em pedaços, por onde a chuva invadia parte da sala, evitando os buracos escuros no chão. Conseguimos chegar até a escada e Tomas me ajudou a subir, já que ainda nos restava algum tempo. A escada estava pela metade, não dando acesso total ao andar de cima, e após quatro degraus inteiros havia apenas lascas destruídas. Com a atenção redobrada, avancei sobre os três degraus e me pendurei em uma estrutura desnuda de madeira; com o meu corpo suspenso, aguardei.

Os cães pararam de farejar assim que chegaram à frente da construção. Tomas caminhou furtivamente para um canto oculto, próximo a uma das paredes, depois agachou-se na escuridão e virou-se para mim com o dedo na boca, um sinal claro de silêncio. Eu aguardei. Os animais entraram no local, curiosos, e logo que passaram pela sala Tomas saiu da escuridão lentamente encarando os cães que estavam imóveis e rosnando. Ele tirou uma pequena trouxa do bolso, desenrolou-a e jogou-a em direção aos animais, que avançaram sobre o que quer que fosse. Passado um breve momento, eles cambalearam e desmaiaram.

Sem perder tempo, ele me ajudou a descer da escada.

— O que era aquilo? — perguntei curioso enquanto observava os cães.

— Sobras de uma broa e meu estoque de fumo, uma erva especial que não se encontra por aqui.

— Eles estão dormindo?

— Sim, relaxados — completou sorrindo.

Passamos pela sala novamente e continuamos o caminho.

Logo adiante flagramos alguns homens agitados, que puxavam rapidamente caixotes para dentro de dois botes amarrados ao molhe estreito.

— Tomas? — Questionou um deles com a voz rouca. Olhou de canto para nós, ainda com um caixote sobre o ombro.

— O que é isso? — Outro homem aproximou-se, esse sendo menor do que os demais, encarando Tomas de baixo, mas tendo uma postura mais imperativa em comparação aos outros.

— Ele precisa de ajuda — Tomas respondeu.

— Você sempre arrasta as suas merdas para onde vai, não é?

— Eu devo isso a ele. Será apenas uma carona e ele irá trabalhar para pagar o que consumir.

— Claro que vai! — exclamou, debochando. — Esse moleque não vai entrar no navio!

— A decisão não é sua — Tomas elevou a voz —, eu nem sequer deveria lhe dar satisfações.

— Alcântara não vai gostar disso! Ele não vai aprovar.

Tomas apenas o encarou com um olhar mortal, enquanto o baixinho mantinha-se firme com seus argumentos.

— Última remessa? — perguntou Tomas para o outro homem que passava em busca do próximo caixote, e ele apenas confirmou. — Eli, vá para aquele bote e só espere. Vou ajudar com esses últimos caixotes para não perdermos tempo.

Ele foi claro e eu não discuti, apenas acatei sua ordem. Manquei até chegar ao bote, e, no caminho, pude ouvir alguns argumentos violentos contra minha presença. No entanto, ao chegar ao bote, um dos homens que empilhava as caixas, sem questionar, esticou a mão para mim. Eu entrei e me sentei. Foi questão de minutos para tudo estar em seu devido lugar.

Os oficiais surgiram por trás das tranqueiras que preenchiam a visão poluída daquele beco do porto, mas, antes que conseguissem se aproximar para tentar reconhecer uma face, as cordas já estavam soltas e os remos levavam os botes para longe. Naquele horizonte escuro, adentrando a fúria da natureza, vislumbrei apenas as luzes das lanternas, das casas e dos comércios, ficando cada vez mais distantes.

 

Eu não sabia dizer se meu corpo estava desistindo pela exaustão e pelo ferimento ou se a noite no mar é tão escura e vazia que parece o abraço da própria morte; um deserto salgado e infinito, faminto pela ingenuidade dos seres que acreditam ter coragem para desafiá-lo. Fosse o que fosse, o silêncio trazia a paz, deixando todo o resto sem importância.

Os remos mergulhavam na água e o bote avançava pelo mar, rasgando-o como se houvesse uma mescla entre a maré e a madeira, sendo somente um. Os homens, vez ou outra, trocavam olhares rápidos, mas em tal obscuridade eu mal podia distinguir quem era quem. No meio da escuridão, a alguns minutos de distância, algumas fileiras de pontos iluminados destacavam-se dentre outros espalhados para lá e para cá, ocultos na clandestinidade.

— Você tem sorte, Tomas, mas a sorte é algo que não dura.

— Hum — resmungou Tomas com desdém.

— Está fazendo merda! E quando essas porras acontecem, todos sofremos — insistiu o baixinho, que não parava de amolar. Tomas parecia não se importar, mas, apesar de parecer loucura ou um breve delírio, eu poderia jurar que via em seus olhos a fúria que se continha em seu interior, quase o impelindo a sacar a adaga de seu cinto e arrancar as tripas do baixinho.

— Se ele tem uma dívida com o garoto, deixe o homem em paz — disse o outro —, o problema não é seu, Augustus. Um braço a mais nessa viagem vai vir bem a calhar, não temos uma boa tripulação e, se o Tomas disse que ele vai dar conta, que seja.

— A última voz que aqui fala é a sua. Ponha-se em seu lugar, Santiago, você sabe qual é!

— E o seu, com certeza não é aqui — retrucou.

— Vai para o inferno! Essa é a última vez que me responde, crioulo!

Augustus inclinou-se para a frente agarrando Santiago pelo colarinho. Tomas largou o remo e sacou a sua lâmina.

— Tome cuidado com o que diz e com o que faz — cuspiu as palavras entredentes, e Augustus sentiu a lâmina fria tocar o seu pescoço. Os três mantiveram-se tensos e, por longos segundos, nenhum movimento foi feito.

— Está escuro como o breu e estamos distantes demais de terra firme para tentar nadar até lá. — Tomas completou com a voz serena, mas sem esconder a aversão a Augustus.

As entrelinhas deixavam claro que eles tinham um passado.

O baixinho mordeu o lábio, retraindo a carranca, e desviou o olhar para o além, claramente raivoso. Soltou o outro homem e jogou-se de costas contra a pilha de caixotes e sacos, encarando-me com desdém. Santiago exibiu um sorriso provocador e apertou, cordialmente, o ombro de Tomas.

Conforme nos aproximávamos do navio, algumas silhuetas começavam a tomar forma, não apenas com a pouca luz que lutava para não desaparecer de seus candeeiros e lanternas, mas também pelos relâmpagos que iluminavam em um flash cada vez que um trovão gritava a magnitude da natureza sobre nós.

Paramos.

Poucos membros da embarcação nos aguardavam, contei somente três no extremo do convés. Usaram cordas para subir os caixotes e depois para suspender os botes. Logo após todos saírem, Tomas me acompanhou. Subimos a bordo, eu ainda estando um pouco zonzo por conta de tudo o que aconteceu. A proa estava vazia, pois a tripulação, já recolhida, descansava para o dia que nasceria. Descemos por uma escadaria até uma longa ala que se estendia para frente e para trás, preenchendo boa parte daquele espaço do imenso navio. Redes esticadas nas colunas de madeira serviam como o leito de parte da tripulação de marujos, assim como colchonetes feitos de madeiras, e de outros materiais para dar o mínimo de conforto, estavam estirados por todos os lados. Roncos pesados compunham uma melodia irritante que ecoava por todo o local acompanhado do ranger da madeira e das ondas que batiam no casco, então seguimos até um lado mais afastado, próximo a uma porção de barris e caixotes sobre um amontoado de serragem, folhas secas e longas de forragem, e outros materiais diversos. Enquanto os demais acomodavam-se, uma mulher enrolada em uma manta grossa saiu de seu leito e aproximou-se de nós rapidamente. Sem proferir nenhuma palavra, ela me ajudou a encontrar um canto para eu descansar, Tomas observou a cena por um instante, em silêncio. Assim, ele se afastou por um momento, mas logo voltou com algumas roupas e cobertores em mãos e de dentro de uma pequena trouxa tirou um pedaço de broa.

Feixes de luzes do luar, que brilhavam belamente sobre o mar criando um horizonte de prata, entravam pelas pequeninas janelas e vãos do casco avariado.

— Vamos ter que suturar e fazer um curativo novo ou você pode perder essa perna — a desconhecida comentou, puxando uma garrafa de dentro de um dos caixotes.

Aproximou-se ainda mais, agarrando a cabeleira da frente do resto e enrolando tudo sobre a cabeça. Ajeitou a manta sobre os ombros e de uma bolsa de couro, até então oculta por suas vestes, tirou algumas pílulas.

— Mastigue isso! – Ela falou, largando as pílulas na minha mão.

Peguei os comprimidos e, sem pensar duas vezes, comecei a mastigá-los.

Tomas agachou-se em frente a mim e retirou o pedaço de tecido que estava preso em minha perna. Do monte de roupas que ele trouxe, a mulher tirou uma faixa longa e branca. Ele abriu a garrafa com o dente, arrancando a rolha e cuspindo-a longe.

— Beba! — disse, entregando a garrafa para mim.

Hesitei por um momento, mas a mulher insistiu.

Já esperando pelo pior, desfiz-me das cerimônias e virei a garrafa, dando uma, duas, três goladas longas, até que Tomas pegou-a rapidamente. Segurou a garrafa, estampando um olhar curioso em sua face, e compartilhou com a companheira um breve sorriso nos lábios ao mesmo tempo em que balançava a cabeça de forma descrente.

Ele deu um gole exagerado e depois virou a bebida por cima do ferimento. Joguei a cabeça para trás, batendo-a contra a caixa dura, cerrei os dentes com violência, forcei os punhos contra o chão e contraí o abdômen engolindo em seco um grunhido de dor. Em seguida, Tomas tirou um cartucho do bolso, arrancou a cabeça dele e derramou um pó negro no ferimento.

— Pronto? — Eu o encarei, temeroso, mas também demonstrando determinação.

Tomas acendeu um palito, tocando-o sobre o pó, o que resultou em um estouro brilhante que percorreu toda a área do ferimento. A dor era tão intensa que me tirou a voz e, por um breve momento, a consciência.

A mulher encharcou novamente a ferida com a bebida, depois enrolou minha perna rapidamente com a faixa e a amarrou. Por alguns minutos eu me mantive ali, com a mente em branco, apenas sentindo a dormência e estupor duelando para ver quem prevaleceria sobre aquele corpo enfraquecido. Quando recuperei um pouco a noção da realidade, ambos me ajudaram a me despir das roupas molhadas e sujas e vestir as secas. Tomas colocou o cobertor sobre meu corpo e assim me dei ao luxo de mastigar a massa dura da broa amanhecida.

— Você precisa descansar — disse a mulher.

— Ninguém irá incomodá-lo aqui. Conversaremos melhor durante o dia — completou Tomas.

— Obrigado. — Minha voz saiu trêmula.

 

A noite e o dia foram como um passeio no inferno.

Tive febre, dor e pesadelos. Meu corpo e minha mente desistiram do autoflagelo somente quando a lua surgiu pela segunda vez. Nesse meio tempo, a desconhecida não dormiu, esforçando-se, encharcando e trocando as toalhas molhadas sobre minha testa e sobre o resto de meu corpo febril.

Quando finalmente consegui abrir os olhos, notei que eu estava deitado em uma cama improvisada. O som das ondas batendo contra o casco do navio misturavam-se novamente aos cochichos e roncos dos demais marujos. Havia um candeeiro ao meu lado, suspenso a um metro do chão, e embaixo dele a mulher descansava abraçada aos próprios joelhos.

— Eu não gostaria de estar na sua pele — comentou ela.

Aquela era a única certeza que eu tinha. Sentia uma forte pressão sobre a perna ferida, acompanhada de um formigamento nos pés e na virilha. Meu corpo coçava por causa da temperatura e minha cabeça doía, como se alguém estivesse constantemente esmurrando meu crânio.

— Tomas…

— Ele está bem, descansando. O dia foi atarefado, muitas coisas para arrumar, é comum isso nos primeiros dias no mar, ainda mais em uma viagem tão longa quanto esperamos que essa seja.

Apertei os olhos para conseguir distinguir a mulher entre os vultos que minha mente produzia.

— Viagem? — Ela me fitou, não surpresa, mas um pouco confusa. — De que buraco Tomas tirou você? — Ela se levantou e se sentou ao meu lado. — Estamos fazendo uma viagem para o norte, é uma missão especial!

— Qual missão?

— Vamos caçar um dragão. — Por um momento aquilo pareceu loucura, mas familiar. Então me recordei da conversa com Tomas na pousada. — Um barão cheio de dinheiro está financiando tudo. Bons pagamentos adiantados, um ótimo pagamento final e ainda um bônus para quando capturarmos a besta.

— Um dragão... — resmunguei, descrente.

— Tudo bem. — Ela deu uma breve pausa. — Alguns acreditam, outros não. O importante é ir, voltar, receber o pagamento e pronto. E também ninguém sabia sobre você, acho justo.

— Não, eu não sabia que era esse o navio.

— Não tinha como saber, eu mesma descobri pouco antes de partir e não foi por acaso. O barão assumiu como capitão, avisou para que todos estivessem prontos, mas só nos convocou de última hora. Bem, quase. Você chegou na última hora. Você está bem? — perguntou ela, observando minha expressão desnorteada.

Não sabia se deveria contar o que havia me levado até ali, considerando que nem mesmo Tomas foi sincero com aquelas pessoas. Talvez, naquele momento, a verdade não fosse ideal ou nem sequer tivesse relevância.

— Minha cabeça ainda está me matando.

Ela passou a mão sobre a minha testa.

— Seu corpo está reagindo contra a infecção do ferimento, mas a ferida já está bem melhor, eu estive tratando com algumas misturas bravas logo você vai estar bem. Eu vou trazer algo para você comer, mas não sei se há algo pronto além das frutas e legumes crus, já que a carne crua faz mal. Daremos um jeito.

— Só água e qualquer grão, mesmo cru, já serve, não quero atrapalhar.

— Você vai se virar melhor do que todo mundo nesse navio, não é? — Ela perguntou sem esperar uma resposta.

— Eles vão me jogar no mar por ser um empecilho — deixei escapar.

— Empecilho é o que mais tem aqui, ainda assim eles têm suas funções para que todos possamos chegar aonde queremos. Vamos arranjar uma para você também. Nem todos chegaram a tempo, sabia?

— O que quer dizer?

— Assim como você, essa viagem pareceu loucura para muita gente também. Olhe ao seu redor e diga-me se vê alguém que parece bater bem ou que tem algo a perder estando aqui.

Eu me esforcei para dar atenção ao compartimento, no entanto, a julgar pelo que havia visto até o momento, eram pessoas diferentes e difíceis de desvendar. Ela se levantou, mas, antes de partir, virou-se outra vez para mim, se aproximou e deixou um envelope pequeno ao meu lado, dizendo:

— A propósito, eu sou Helena.

Enquanto ela caminhava para longe, peguei o envelope com cuidado, abri-o e desdobrei a carta que havia dentro, trazendo-a para a luz. Enquanto meus olhos percorriam a carta, meu coração se enchia de saudades, pequenas lembranças se fragmentavam em minha mente e se reconstruíam imitando momentos reais no imaginário. A carta era de Jezebel, endereçada a Nigama. Lágrimas escorreram do meu rosto e um sabor amargo se instalou em meus lábios. Aos poucos, enquanto eu corria pelas palavras e maravilhas descritas na carta, um estranho conforto vinha até mim, acompanhado pelas aventuras que eu viva em segredo como Nigama e Susana assumia seu papel de Jezebel, jovens apaixonados separados por mares e continentes que se correspondiam trocando afeto e histórias incríveis de seus feitos em terras oníricas. Estar no mar trazia uma certa nostalgia. O cansaço da desventura me impediu de terminar a carta, mas certamente continuei suas ilusões enquanto sonhava e descansava para o que ainda estava por vir.







Acordei pela manhã com os demais tripulantes. Apesar de eu ser o único estranho ali, parecia que quase ninguém se importava com isso e, talvez, todos fossem desconhecidos uns para os outros, eu apenas não sabia disso. Helena me apresentou para alguns, a maioria responsável pela manutenção dos compartimentos internos, áreas de descanso e armazenagem, depósito de armamentos e ferramentas. E, por último, levou-me até a cozinha.

O velho navio militar estava surrado e ultrapassado, mas ainda conseguia desempenhar bem a sua função. Ao menos a de velejar. Helena disse que para aquela aventura não existia um transporte melhor: as avarias não tiravam a sua vantagem em resistência e potência em alto mar, e a maior parte da tripulação era composta por mulheres e homens ex-militares ou desertores, mercenários e bucaneiros.

Passamos por corredores com aspecto desgastado, como se o próprio navio tentasse dizer que já estava chegando ao seu momento de descanso, fosse a aposentadoria ou talvez ele precisasse apenas de um carinho, férias para um tratamento rejuvenescedor, afinal, continuava forte. O cheiro era uma mistura estranha, em alguns momentos parecia ferrugem amarga, em outros era como o salgado do mar e o doce da madeira. Também se podia sentir, ao menos naquele dia quente, um cheiro leve de suor que quase se camuflava aos demais odores que vinham, em sua maioria, dos depósitos e da cozinha.

Na cozinha, carregados de batatas e outros alimentos, vi os balcões longos que se estendiam preenchendo grande parte da sala. Atrás de algumas portas semiabertas havia carnes sendo preparadas com cortes experientes e especiarias para garantir seu tempo útil. Outra porta ao lado mostrava incontáveis utensílios e fogões.

— Este é Remi — disse Helena apontando para um grande homem de avental branco encardido.

A cozinha era grande, considerando que os tripulantes comiam no refeitório, na proa ou nos dormitórios. As paredes eram uma mescla de tinta opaca com ferrugem e ao menos os balcões pareciam de madeira nobre e mármore. Havia sacos enormes empilhados em vários cantos, cheios de arroz e outros tipos de grãos, além de outros compartimentos que iriam garantir os alimentos, mantendo a fome longe até o retorno da viagem.

O homenzarrão virou-se para mim, curioso, largando a porta que segurava, que se fechou rapidamente com um baque, e andou em nossa direção segurando alguns pedaços grandes de carne. Imaginei que fossem uma perna inteira de boi.

— Ele é quem mantém nossas barrigas cheias. Apesar do tamanho, é um doce de pessoa. — Remi a encarou com o semblante fechado, mas logo se desfez em um meio sorriso.

— E também é quem faz a fofoca! — exclamou uma mulher ao entrar na cozinha. Segurando uma bacia com mel, ela deu a volta no balcão, parou em frente a uma pia e encheu um grande balde já com algum líquido preparado. — Mas mantém nossas barrigas cheias, é. — Ela me encarou de canto, a pele clara e levemente enrugada era marcada por pequenas cicatrizes, o longo cabelo estava trançado e enrolava-se no pescoço.

— Gina também cuida da cozinha. Já navegamos juntos, todos nós.

— Pensei que todos haviam se conhecido por causa dessa viagem.

— Alguns. — respondeu ela, pensativa — Os mais velhos se conhecem da cidade ou do Mercado e os mais novos que não são seus filhos são… bom, como você.

— Moleque ambicioso, está louco para encher as mãos com essa grana, não? — Argumentou Remi com um sorriso macabro, mas sem intenção de ser rude. Ele jogou a carne sobre o balcão, o pedaço do boi batendo com força contra a madeira, ecoando. Puxou um cutelo cavalar da cintura, sob o avental, e desceu golpes na carne, como se castigasse alguém.

Apesar do tamanho, as expressões de Remi pareciam inocentes, ou talvez fosse seu olhar. Ele possuía a pele escura, que destacava seus sorrisos estranhos e cativantes, mas isso não tirava a sua presença intimidadora e impressionante, ele poderia transparecer o que quisesse, por bem ou mal.

— Eu… é... — Sem saber se o comentário havia sido uma crítica, apenas o aceitei.

— Eu quero abrir minha adega — Gina mexia no balde com uma colher comprida de madeira —, chega de penar com serviços pequenos! Remi e eu vamos abrir esse negócio no Mercado, com carne, vinho, qualquer outra coisa alcoólica e o que mais o grandalhão quiser vender. Que tal queijo?

— Porco, talvez? — opinou Helena.

— Porco? Isso é gordura, não carne! Vinho e queijo, todo mundo ama, talvez broa fresca, fermentados e hidromel! Não pode faltar hidromel — completou Gina. Ela tinha um jeito provocativo de encarar as pessoas, mexia constantemente e de maneira sutil o nariz como um reflexo ou mania.

— Era a especialidade da minha mãe, porco, sabe! — Remi bateu uma e duas vezes, partindo a carne e o osso ao meio. — Lembro que tarde da noite na senzala, ainda pequeno, quando todo mundo se recolhia do campo, enquanto alguns aproveitavam água quente para descansar os ferimentos, aqueles que não estavam tão cansados enchiam as panelas de barro com água, grãos e muito porco, que os senhorios não comiam. Era delicioso.

— Porra! Pé, orelha, focinho, essa nojeira?

— O pouco que tínhamos — respondeu ele de canto para Gina.

— Desculpe-me, Grandão, não quis ofendê-lo, mas não consigo imaginar isso ficando gostoso, talvez de onde você vem, como fazem, bom, não consigo.

— Eles chamam isso de feijoada — comentei. Foi um momento nostálgico... Enquanto Remi falava, memórias da minha infância, quase perdidas, voltavam em fragmentos, pequenos recortes prazerosos e aquecidos por bons tempos que não voltariam mais. — É, minha ama também costumava fazer, mas só quando meu pai não estava.

— É só gordura, mas pelo menos não deixa você morrer de fome — disse Gina. — Não é minha culpa se não gosto. Mas, se a fome for suficiente para comer os próprios tornozelos, tudo bem. E por falar em tornozelos… — Ela me fitou da cabeça aos pés. — Tem muita fruta para amassar aqui, você tem força nessas pernas?

Olhei para baixo, flagrando as ataduras justas em volta do ferimento que ainda se recuperava.

— Ele ainda não está recuperado, Gina — disse Helena.

— Só dá para esmagar se for pisando? — questionei, curioso.

— Claro que não, há muitas maneiras de esmagar essas frutas, até mesmo com um tronco. Mas há uma certa sutileza em esmagar com os pés, é como abater um animal, não é, Remi? — O homenzarrão se virou para ela e então para mim com um sorriso de orelha a orelha.

— Ah, sim! — Seu olhar amendoado lembrava o de uma criança, apesar de seu tamanho muscular monstruoso. Ele se inclinou para frente, em minha direção, e seus lábios grandes começaram a se mexer exibindo dentes tortos e avantajados. — Já pensou contar para o boi que você irá matá-lo e comê-lo? Ou então deixá-lo ver a marreta indo em sua direção? Isso não é bom, deixa o bicho nervoso. Ele se contorce todo, sabotando a carne, e tudo por dentro fica ruim, duro.

Deu uma pausa, virou os tocos da carne que estava cortando, puxou um facão de baixo do balcão e começou a arrancar tiras dos pedaços. Então continuou:

— Você tem que acariciar o bicho, não pra amenizar o sofrimento, pois nós sabemos, assim como eles também sabem, quando morrerão, mas, sim, para mostrar que ele é importante e que você sempre estará ao seu lado. Afinal, você o engordou e isso não foi de graça. — Ele jogou alguns filetes da carne sobre o seu ombro, abaixou-se rapidamente e pegou dentro do armário um pote com sal grosso. Depois, com uma mão espalhou o sal sobre a madeira do balcão e com a outra espirrou um pouco de gordura, a qual estava guardada em um recipiente perto dele. Então pegou novamente os filetes e os jogou sobre o sal. — Já pensou se você for anunciar para as frutinhas que irá esmagar todas elas?

Nós todos rimos.

— A questão é a sutileza e a tradição, meu querido. — Gina tirou a colher do balde e a levou até a ponta dos lábios. — É tudo tradição. De onde eu venho é assim que fazemos a bebida, não essas porcarias de cachaça que vocês fazem aqui. Lá é vinho, cidra, hidromel, e tudo tem sabor. — Ela deu uma breve pausa. — Tudo embebeda. E é bom! — completou, exaltando-se.

— O que você sabe fazer? — Remi me fitou, curioso. Gina e Helena o seguiram com a mesma expressão.

— Bom, eu sei desenhar — comentei, quase resmungando.

— Claro! Um artista vai ser mais do que útil em uma viagem mar adentro! — exclamou com arrogância Augustus ao passar pela porta. Ele encostou-se contra a parede e, com um olhar amargo, cruzou os braços. Remi apenas desviou a atenção.

— Há muitas coisas que um artista pode fazer, as quais um mercenário não tem a menor ideia. — Gina me defendeu.

— Coisas como pintar quadros idiotas? Ele irá comer a porra da tinta? Ou usar a moldura para se defender quando um maldito atacá-lo?

— Perspectiva, seu imbecil. Ele enxerga o mundo de maneira diferente de como nós vemos.

— Eu sei fazer broas, entendo um pouco de fermentação — soltei entredentes.

— Ele já era interessante e agora acaba de se tornar mais útil do que você! — disse Remi, sem encarar Augustus. O baixinho bufou e fechou a cara para mim, dando as costas e saindo, com raiva, da cozinha.

— Não dê atenção para ele, algumas pessoas não se contentam em cuidar apenas dos seus problemas e nascem tão amargas e tão ruins quanto o próprio demônio. — Helena não demonstrou emoções, suas palavras foram secas. Em nenhum momento ela deu ouvidos ou sequer olhou para Augustus.

Por um segundo a cozinha se preencheu com uma atmosfera estranha, como se houvesse algo que eu deveria ter notado, mas que passou batido.



Passaram-se três semanas para eu me acostumar com as funções da cozinha. O dia a dia era atarefado e eu mal conseguia sair para sentir o sol, mas, em contraponto, eu era presenteado por noites intensas e brilhantes com um céu carregado de estrelas. Em alguns momentos, por mais que a paisagem fosse exuberante, o medo e as incertezas me faziam temer pelo próximo dia, assim como me afogavam em momentos intensos de depressão e autoflagelo pela culpa que eu carregava por tudo o que havia acontecido. Era difícil relembrar do passado, das coisas boas, sem pensar nas coisas ruins; volta e meia, eu me pegava pensando sobre a saúde do hospedeiro, se ele havia ficado bem após o incidente, como estaria a sua família e…. Susana.

Na maior parte das noites tortuosas, eu buscava gatilhos ou maneiras de escapar das armadilhas que minha mente preparava. O que normalmente funcionava eram as cartas. Tomas, que por vezes passava a noite em claro me apoiando e tentando trazer conforto com sua presença, suas histórias e um carinho caloroso, havia conseguido um pequeno caderno com o Capitão, além de carvão. Eu escrevia uma ou duas páginas, delirando sobre uma vida distante e cheia de vida e aventuras, mistérios e ilusões como costumava conversar com Jezebel. Mas, não podendo entregar essas cartas, deixava-as para quem interessasse, enroladas dentro de garrafas e atirando-as ao mar noturno.

Quando o céu estava aberto, eu subia para observar as estrelas. Cada pontinho brilhante se refletia no mar e em período de chuva, com o barco encharcado, se refletia também em sua superfície, como se eu estivesse preso em uma caverna de diamantes.

— São os espíritos daqueles que nos deixam para trás. — Helena costumava dizer sempre que me acompanhava em momentos de contemplação e deleite da paisagem infinita e do silêncio da humanidade.

— Ou, talvez, sejam apenas estrelas — comentou Tomas, aproximando-se.

Estávamos sentados sobre a amurada, compartilhando uma garrafa de sangria. Ele se sentou ao nosso lado, esfregando os olhos cansados. A garrafa chegou em suas mãos e, dispensando as cerimônias, ele a bebeu.

— Elas nos orientam, são mais do que meras estrelas, mas se forem espíritos serão apenas os bons. — Eu disse.

— Muitas vezes os navios se perdem no mar por causa delas, ou seja, os bons compartilhando maus conselhos — retrucou Tomas. Ele deu outro gole e me devolveu a garrafa.

— Se as pessoas se perdem é porque não sabem o que buscam. Um animal que se perde em uma tormenta sempre sabe o caminho de volta.

— É, mas acho que não somos esse tipo de animal.

— Não importa o que pensamos, elas continuarão estando lá e nós aqui. — Helena sempre tinha conclusões precisas, apreciava falar sobre tudo um pouco, mas não se sentia confortável em disputas intelectuais, pois, para ela, não havia meio termo.

A mulher abriu a boca em um bocejo exagerado, despediu-se e partiu. Enquanto eu aguardava o sono surgir e me agarrar com unhas e dentes, a prosa continuava acompanhada pelo som da madeira, das ondas e das velas que respondiam ao vento que nos guiava.

— Estou curioso. Afinal, por que me ajudou? — Tomas me fitou, como se eu devesse saber a resposta ou não precisasse perguntar. — Você poderia ter acabado em maus lençóis, já perdeu metade dos seus privilégios por minha causa e sinto que Augustus, e algumas outras pessoas, não apenas desaprovam minha presença, como também desprezam suas atitudes.

— Você precisava de ajuda.

— Podia ter me deixado sozinho após o beco.

Ele refletiu por um momento, não por não saber o que dizer, mas, em suas perspectivas, por não querer parecer arrogante. Seu olhar pareceu distante por um momento e pude ver claramente como ele era mais jovem do que eu havia imaginado. A luz da lua, vez ou outra, cobria sua pele atribuindo um brilho especial, essencial, talvez intrínseco, perceptível apenas para quem quer ou merece vê-lo. O contorno do queixo se mostrava mais delicado, assim como os lábios que eram molhados pela ponta da língua entre uma ou outra pausa.

— Eu não conheço você, isso é claro, mas você merecia mais do que apodrecer em uma espelunca em Meradosia. Artistas fazem arte e sobrevivem, pois é isso que sabem fazer. Mas você... você faz mais do que arte, você compartilha e absorve, faz por amor. Olhe à nossa volta: há opressão, desespero e todos lutando para sair de uma vala lamacenta. Não entendemos mais o que é prioridade, lealdade e dedicação, tudo gira em torno de denominadores comuns, como dinheiro, status e essa merda toda em que nos fazem acreditar e da qual nos obrigam a correr atrás a cada segundo da nossa vida, cada respiração… fodendo com nossos sonhos. A arte também é consumida por esses fatores, mas o que você faz é algo único e todos nós somos reflexos de nossas ações.

As palavras de Tomas me atingiram profundamente, instigando-me a olhar para dentro de mim com outra perspectiva e a limitar minhas dúvidas.

— Sabe, pareceu a chance de dar a você uma oportunidade, assim como foi dada a mim, no passado. — Ele deu uma pausa e continuou. — Pude perceber que o seu amigo na pousada queria mais para você, ele sabia do seu potencial, e agora você só precisa acreditar e buscar mais para si mesmo. Acho que o que aconteceu naquela noite, seja o que tenha sido, foi um sinal de que você deveria estar aqui. Mas o que será que vem agora? — finalizou, com um sorriso animado e curioso.

Ao terminar a frase, o tempo despencou sobre nós, dando a impressão de estarmos congelados enquanto todo o resto do universo trabalhava. Deitei no chão da proa, largando minha contribuição para o mundo e, ignorando que tudo estava molhado, soltei um suspiro alcoolizado e reflexivo. Tomas se deitou ao meu lado, e assim compartilhamos mais do que a apreciação pelos detalhes, mas também uma compreensão sobre a vida, a qual dispensava palavras. Eu sentia que lhe devia por ter me ajudado, no entanto, ao mesmo tempo, sabia que ele nunca me cobraria por nada.

— Meu pai costumava me contar histórias sobre a lua, as estrelas e as culturas que ele conheceu — comentou Tomas, observando o céu. A luz da lua lhe acariciava a face e se contrastava com a barba rala; a sua beleza adulta tinha um certo charme exótico; a sua descendência lhe proporcionara olhos sutilmente apertados e com um tom profundo; e seus lábios se mexiam mesmo quando em silêncio, como se ensaiasse ou conversasse consigo mesmo. — Uma das minhas favoritas é o kûarasy, deus Sol, ele dizia, criador da vida e de tudo o que é vivo, enquanto Îasy, deusa mantenedora, a Lua, era protetora das coisas vivas. Para sempre separados, vivendo uma existência compartilhada, mas sem nunca realmente estarem juntos. Até parece um romance dramático.

— De qual lugar ele trouxe essa história?

— Não sei ao certo, pois o velho costumava ir para muitos cantos, eu mal conseguia acompanhar todas as histórias. Ele sempre tinha muito pra contar. Comentou algo sobre Tupi, talvez distante ou ao lado de casa, seja como for, era parte de seu passado.

— Tragédia grega. Ou de Shakespeare, talvez. Por que tem tanta tragédia nessas histórias? — perguntei esfregando os olhos. O cansaço estava próximo e o álcool já estava me deixando mais criativo e filosófico.

— A tragédia dá mais vida para o romance, não acha?

— Já percebeu como o romance é o que introduz toda história, digo, toda guerra em histórias?

— Como assim? — perguntou ele.

— Sempre há o amor que se transforma em ódio, há um objetivo ou ambição, e tudo se deturpa transformando-se em caos. Mas então vem um conflito e algo dá totalmente errado. Depois vem choro, choro e tragédia.

— Parece um ciclo se repetindo. — Ele comentou com um olhar mais distante, como se aquela ideia tivesse uma importância maior para ele.

— Igual a vida.

— Você acha? Mas será que há uma tragédia em todos os ciclos?

— Queria pensar que há apenas uma e depois fica tudo bem. No entanto, com o tanto de merda que já me aconteceu, certamente estou errado — respondi, ironicamente. — “Quão ignorante és no orgulho de tua sabedoria!” — citei em voz alta em reflexão. — Acho que a tragédia é isso.

— O que é isso?

— Algo que li em algum lugar. Pensamos saber tanto, porém só fazemos mais merdas.

— Estupidamente verdadeiro. Mas isso nos faz humanos, não é?

Realmente aquilo soava como o romance dramático da história da humanidade. E ainda era poético, por mais absurdo que fosse.

— Meu pai me contava histórias também, mas no caso dele era sobre o quanto odiava o padre, o açougueiro, o carteiro e os bancos — retomei.

— Ele parece ser uma peça rara — comentou Tomas.

Lembrar do meu pai trazia sensações estranhas, desconfortáveis, mas igualmente servia como um exemplo do tipo de pessoa que eu nunca deveria ser. Fragmentos incontáveis de momentos ferrenhos poluíam minha mente, como quando não aprovava nada do que eu fazia e simplesmente me olhava com um olhar de desdém, de reprovação. Eu não o odiava; no entanto, na pouca idade que tinha eu já havia aprendido a deixar de amá-lo.

— E se eles ficassem juntos? — perguntei de ímpeto.

Tomas me olhou, tentando entender o questionamento. Virei-me de lado e descansei a garrafa entre nós. Logo ele também se virou para mim.

— O que quer dizer? – ele perguntou, confuso.

— O sol e a lua.

— Provavelmente morreríamos — comentou, rindo.

— É evidente, mas digo no sentindo de bem e mal, luz e sombra, dia e noite. Sei que tudo isso são metáforas, porém não existe preto e branco. E se tudo isso fosse como as coisas realmente são, cinza?

— Acredito que muita gente ficaria decepcionada. Criamos esse tipo de coisa para poder termos uma escolha, não apenas para darmos nomes aos bois. Tem que haver algo mais e nós temos que poder escolher.

— O ser humano e sua obsessão por controle e atenção.

— Ah! É o que é, poderíamos querer mais? — ele soltou uma gargalhada baixa, deixando-me sem palavras.

Naquele momento os seus olhos estavam fixos nos meus, sua sensibilidade ficava mais visível quando a guarda estava baixa e ele apenas falava o que lhe dava na telha. Uma tensão esquisita me fez sentir o palpitar do meu coração, um sabor de anseio, eu diria. Tomas esticou a garrafa, encostando-a contra meu peito, com um sorriso no rosto. Peguei a garrafa e senti o calor da mão dele sob minha palma. Tomas aproximou-se com movimentos delicados, soltei a garrafa e, em um movimento impulsivo, toquei-lhe o rosto. Logo seu corpo todo estava quase colado ao meu, assim como seus lábios.

Senti alegria, confiança e, erroneamente, segurança.

Enquanto meu âmago se deleitava com faíscas de uma estranha paixão, nas sombras, por detrás do mastro e dos caixotes, ocultava-se um olhar violento, invejoso e vingativo, tramando o pior ao nos observar.

 

Parte III

O tremor de um choque contra o casco do navio despertou a todos. Rolei da cama com o coração na mão, gritos confusos dominavam todos os ambientes. Mesmo atordoado, segui os grupos que avançavam pela proa e se encaminhavam, cada um, para seus postos. A voz do capitão se destacou entre os barulhos, um timbre difícil de ser reconhecido, mas potente o suficiente para saber de qual posição vinha. Eu o havia visto poucas vezes, pois estive ocupado na cozinha pela maior parte do meu tempo e ele era reservado a tal ponto de sair de sua cabine apenas em extrema necessidade. Nesse meio-tempo, Augustus e mais dois marinheiros assumiram a responsabilidade do navio.

— Há algo no mar! — gritou Augustus, inclinado na amurada.

— É impossível ver! — retrucou uma mulher.

— Não mudem o curso e mantenham velocidade. Se for o que esperamos, não queremos ser pegos de surpresa — disse o capitão.

Da mesma maneira, pus-me a ajudá-los. Com dois ao meu lado, recuei as cordas das velas. Era alto mar e as ondas nos jogavam para cima e para baixo, em certos momentos sentíamos o impacto contra o casco se repetir, mas sem conseguir distinguir nada sob nossos pés. Do outro lado do navio uma mulher gritava, dizendo ter uma visão clara do inimigo. Logo o capitão se deslocou com agilidade, proferindo ordens para os marujos carregarem as armas, tendo rapidamente tudo em seu devido lugar.

No entanto, uma chuva inesperada desabou sobre nós, retardando nossos sentidos e tornando impossível distinguir o que realmente nos rodeava. Em um dado momento outro choque quase nos jogou ao chão; um som estrondoso, como o de um trovão enfurecido, nos ensurdeceu e nesse instante pude observar Tomas lançar-se para segurar um dos homens, evitando assim que o sujeito fosse arremessado ao mar. Outros menos afortunados não tiveram a dádiva de um salvador e acabaram caindo entre as águas.

— Ele está aqui! Preparem-se! — gritou o capitão do tombadilho.

As lanças e canhões foram armados, aguardando ansiosos o momento perfeito de que precisávamos.

— Uma sombra passou a bombordo!

— Não! Está à frente!

Claramente havia uma confusão pairando sobre todos nós. A euforia desordenou o modus operandi e por consequência parecia que ninguém estava enxergando nada. Alguns lançaram no mar chamarizes banhados a óleo e chamas, porém, um a um, eles imediatamente eram engolidos pelas ondas.

Um rugido ecoou saindo da escuridão no horizonte e, sem demora, se repetiu, parecendo nos rodear por todos os lados. Eu corria pela amurada quando um raio atingiu a vela do traquete e fui surpreendido por um homem despencando do cesto. Seu corpo bateu seco contra o chão, cobrindo-me com o sangue.

O pedaço de madeira se inclinou e começou a cair do alto ao mesmo tempo em que flagrei, do outro lado, um amontoado de cordas se soltando e varrendo o caminho, como a uma navalha. Mas percebi tarde demais, pois a corda já avançava com velocidade em meio aos tripulantes, arrancando a cabeça de uma mulher e partindo um homem ao meio. Nisso, também flagrei alguns sacos abarrotados suspensos sobre o deque de carga.

— Usem de contrapeso! — Tomas gritou, apontando para dois companheiros.

Eles correram em direção ao deque, mas outro impacto contra o navio os desviou do curso, um se atrapalhando sobre o outro e ambos caindo sobre o parapeito. Apressei-me em direção aos sacos enquanto o mastro perfurava a outra vela, alguns corriam para lá e para cá tentando evitar que os caixotes fossem perdidos, outros socorriam os que haviam se ferido durante os choques.

Alcancei os sacos e imediatamente Tomas estava ao meu lado. Juntos subimos a enxárcia, agarrando forte os nós. Alcancei a verga e corri sobre ela até o final, mas outro impacto arremessou o navio sob uma onda e a água cobriu a proa, atirando ao mar caixotes e alguns tripulantes.

Percebi Augustus preso sob uma das caixas, com uma vela despencando sobre seu corpo. Então, sem pensar duas vezes, joguei-me sobre os sacos e rapidamente cortei as cordas que suportavam um lado, vendo-as cederem no mesmo instante. Os sacos balançaram como um pêndulo, puxando a vela para o lado, mas, quando ela finalmente se soltou, mergulhou no mar.

Sem destreza, saltei e me agarrei à estrutura lateral do navio, batendo meu corpo com brutalidade no casco e sentindo uma dor profunda. Senti um pé vacilar e fiquei suspenso apenas com uma das mãos, pressentindo o pior. Mas, de relance, notei uma silhueta diferente do que todos haviam comentado: a pele era gelatinosa e o corpo boiava em meio ao mar, refletindo em si os relâmpagos e o pouco da lua que ainda conseguia se exibir entre as nuvens carregadas, que já nos abandonavam. Outra onda se ergueu, vindo de frente com o navio, e como um soco me jogou na água.

Dentro da escuridão, além da certeza da morte, senti a solidão. Meus braços se cansaram antes mesmo de eu conseguir voltar à superfície e a violência do mar arrancava mais do que a minha esperança e sorte, mas também o meu fôlego. Por um momento desisti, meu corpo afundou como uma pedra no lago e aos poucos foi envolvido por aquela imensidão. No entanto, algo me puxou para cima. Uma força se prendeu em volta dos meus ombros e me arrastou até a superfície, colocando-me sobre um dos caixotes que boiavam. Com o impacto contra a madeira, toda a água que preenchia meus pulmões foi expulsa e, não muito longe, observei os tripulantes no navio atirando cordas para aqueles que resistiam à força do mar. Sem sucesso tentei me levantar, mas então me deparei com uma criatura. Sobre a água apenas parte da sua face estava exposta, o olhar profundo e grande se destacava do seu tom de pele perolado, exibindo um preto intenso.

A exaustão tomou conta do meu corpo e, mesmo que eu insistisse no contrário, minha consciência me abandonou.

 

Durante doze dias trabalhamos sem parar para fazer os reparos no navio. Há quilômetros da costa mais próxima, os nervos se afloravam com a falta de comida e a escassez de água potável. Quando não surrados pelas noites tão frias quanto o próprio inferno, as tardes ardiam com o sol quente semelhante a um vulcão.

— O próprio Poseidon está nos punindo por atrapalhar seu descanso! — dizia Gina.

Por vezes nós nos apanhávamos em monólogos sem sentido, tentando com isso abstrair os sentimentos ruins que acompanhavam as diversas necessidades e afastar os instintos mais primitivos. Eu estava fraco e, desde que me resgataram no mar, parecia que tudo tendia a piorar. Vez ou outra eu era consumido por alucinações.

O capitão se mantinha recolhido em sua cabine. Após o gritante fracasso, ele permanecia solitário e em silêncio, não prestando atenção ao seu redor e ausente de sua autoridade. Ficou a cargo de Augustus e de outros tripulantes tratarem dos conflitos verbais que eram incessantes dia e noite.

— A vela estará firme até amanhã! O Joaquim disse que o capitão definiu uma nova rota — comentou Tomas, aproximando-se com Helena.

O calor intenso do sol aquecia a madeira do navio, mas, apesar da quentura, alguns de nós usavam mantas longas e capuz de algodão. Àquela altura já havíamos perdido um tripulante para a desidratação, ao passo que outros se lamentavam com terríveis queimaduras.

— Ele realmente quer continuar com isso? — indaguei.

— Não desistirá por nada. Ainda não sabemos o que aconteceu de verdade ou o que vimos, e por isso, mais do que nunca, ele irá querer continuar — disse Helena. Ela estava certa, as chacotas sobre o objetivo da viagem haviam cessado, ninguém falava mais sobre o assunto;, no entanto, todos estavam confusos sobre o desastre que nos atingiu.

— Augustus intimou a todos, então vamos fazer uma parada em Puenta para repor alguns suprimentos. Ele também deixou claro que quem quiser desistir deve dizer imediatamente – revelou Tomas.

O tom que havia saído da boca de Tomas ao contar tal notícia me incomodou e assim lancei a pergunta, sem me dar conta:

— Você pensa em deixar o navio, Tomas?

— É muito dinheiro em jogo, não acha? Desistir só por causa de uma tempestade.

— Parecia mais do que uma tempestade — rebateu Helena.

— Você já velejou muitas vezes, então sabe que o mar castiga. Tivemos o azar de pegar uma tormenta, mas a sorte de aguentar firme. Dificilmente isso acontecerá de novo, nós viemos de muito longe para desistir agora.

— Se vamos continuar, precisamos nos garantir! — Helena se manifestou, com o semblante tenso. — Sabemos que todos estão aqui pelo mesmo objetivo, mas não podemos achar que alguém faria qualquer coisa pelo outro.

— Eli jogou-se da vela por Augustus, não podemos simplesmente julgar a todos. Vamos ver quem irá desistir e quem irá continuar, assim saberemos em quem confiar — disse Tomas. — Definitivamente não podemos decidir nada agora, as avarias irão tomar tempo para serem reparadas e esse mesmo tempo será o suficiente para sabermos quem ficará entre nós.

 

A chuva, que deveria ser um alívio, nos atingiu como uma tortura. O sol se escondia por trás das nuvens e nós torcíamos para que o navio não perdesse velocidade até Puenta. Muitos tripulantes praguejavam, reclamando não poder beber daquela água; caminhei pelo dormitório em busca de ar fresco, mas alguns compartimentos se assemelhavam a saunas no final de tarde, exigindo muita vontade ou muito cansaço para permanecer ali. No entanto, pelo estado de desgaste da maioria, até mesmo uma sauna seria o suficiente.

Do alto do cesto, Joaquim acenou. Corri para o tombadilho e contemplei um lençol laranja, seguido por rosa e azul escuro, cobrindo o horizonte. O último raio de sol despontou e a noite chegou sorrateira. Passei um longo tempo encostado no parapeito, com a mente imaginando a pousada e tudo mais que havia ficado para trás. Meu coração pesava ao ponderar que pude gerar qualquer resquício de decepção no homem que me criou e no amor perdido.

Contudo, um estalo me despertou dos devaneios e, inclinado, reparei em um movimento, um vulto ou parte dele, junto ao casco. O som se repetiu e me atraiu mais uma vez, agora para o lado oposto; entre uma onda e outra enxerguei o inesperado. Com urgência avancei pelas escadarias, sem me expor por completo, atravessei a janela do canhão e nesse momento, logo abaixo, uma faceta se escondeu ao notar minha presença. Voltei a cabeça para dentro e conferi se estava sozinho.

— Ei! — chamei ao passar a cabeça e um ombro pela janela. A face emergiu devagar mais à frente. — Eu não irei machucar você! — tentei outra vez, no entanto, em resposta, ela apenas me encarou.

Não foi tão simples, como na noite do desastre, mas dessa vez consegui distinguir muito das características da criatura e, quando me dei conta disso, ela já havia sumido mais uma vez.

Sem pronunciar nenhuma outra palavra, mantive a paciência em meu posto. Minutos depois a faceta surgiu novamente, agora mais perto. Conforme se aproximava, um ruído esquisito preenchia meus ouvidos e aos poucos tomava forma. Não demorou para a melodia soturna e doce me tocar como uma voz. Apoiei o queixo sobre a madeira e fiquei observando o ser ao mesmo tempo em que eu também estava sendo observado, sem entender, sem questionar, apenas sentindo.

Tive uma sensação esquisita quando um ruído no fundo do compartimento me arrancou daquela espécie de transe, um barulho semelhante a algo se enroscando e se rasgando. Levantei-me rápido, mas discretamente, e, sobre os canhões que restaram, eu espiei em todas as direções, sem vislumbrar nada à minha frente. Voltei o olhar para a janela, agora sem vestígios da presença da criatura, e uma tristeza repentina me açoitou. Porém, tão rápido quanto ela veio, ela se foi, sendo espantada pelas vozes berrantes que ecoavam pelo navio:

— Terra à frente! Preparar ancoragem!

 

Parte IV

A primeira noite e o dia seguinte foram repletos de trabalho árduo. Os destroços foram removidos e funções foram designadas para aumentar a eficiência nos reparos. Logo que chegamos, o capitão saiu acompanhado, adentrou a mata baixa, que subia a costa por entre elevações até a cidadela, e retornou sem demora, trazendo consigo um grupo de homens que imediatamente iniciaram os consertos e as trocas do que era necessário para que o navio estivesse pronto o quanto antes.

— Vamos zarpar no final da tarde de amanhã! — ele disse, entusiasmado.

Um olhar confiante brilhava naquela face marcada pelo tempo, os pelos grisalhos lhe cobriam o rosto tal como os cabelos. Não muito diferente dos demais, ele evitava exibir vestimentas chamativas, o que era o esperado de um capitão, mas, por outro lado, parecia estar montado para uma guerra.

Foi difícil e demandou um grande esforço conjunto, mas conseguimos erguer a vela partida. Os ferreiros fizeram um ótimo trabalho recriando ligas para sustentar o mastro, considerando a pressão da vela ao ser arrastada pelo vento. Os condimentos foram reabastecidos durante o final da tarde, enquanto se realizavam a troca das velas. O grupo encarregado dos reparos do casco concluiu tudo de maneira formidável, graças aos contatos do capitão que disponibilizaram mão de obra para ajudar e ferramentas boas para agilizar o processo.

— A dispensa durará até o amanhecer, então aproveitem o pouco tempo que ainda temos em terra. Quem ainda estiver apto e determinado a continuar a jornada deve estar aqui antes de partirmos, os demais retirem seu pagamento comigo no Baito.

— O que Augustus quer dizer com Baito? — perguntei baixo para Helena, que estava ao meu lado quando as instruções eram passadas.

— É o maior bar em Puenta, porém maior não em tamanho e, sim, em baderna, por assim dizer.

— Um antro de bandidos e assassinos! — opôs-se o grande Remi. — Nada de bom entra ou sai de lá.

Observei atento os tripulantes se moverem para todos os lados. Tomas passou por mim, trombando de leve contra meu ombro, e parou a um passo de distância, encarando-me de canto. Depois continuou a andar para fora do navio.

Subindo a costa, passamos por um pequeno vilarejo que dava fácil acesso à cidadela, mas, diferente do que eu havia imaginado, não havia muros nem cercas; o vilarejo se caracterizava por pequenos barracos mal distribuídos, onde os nativos residiam, e a cidadela era infestada por turistas que gastavam seus torrões nos mercados e nos bares. Era possível ver do outro lado das construções as velas dos outros navios atracados ao porto no centro da ilha.

As construções se erguiam de maneira confusa, em mistos de tijolos e madeiras irregulares; o clima noturno lançava sobre Puenta um ar mórbido. Mas ele durou pouco, pois qualquer desculpa bastava para uma dispensa dos trabalhos, como o desembarque de recém-chegados. Acompanhando Helena, Gina, Remi e Tomas, segui pelo mercado até a rua principal. Lá avistei uma quantidade absurda de pessoas circulando em todas as direções. Nas barracas comerciais, quando as camadas sobrepostas interferiam umas sobre as outras, as luzes revelavam cores opacas em tons quase indistinguíveis. As luminárias eram responsáveis pelo espetáculo visual que logo se tornava caótico ao se contrastar com a multidão.

— Lembro da minha primeira visita nessa pocilga, levei uma facada ao tentar apartar uma briga – disse Remi, calmamente.

— E o que aconteceu com as pessoas que brigavam? — perguntei, pasmo com a história Remi.

— Eles pararam de brigar e foram beber juntos enquanto a dona me costurava. — Todos riram.

Helena corria de um lado para o outro, empurrando as pessoas e fuçando nas mesas das barracas que se estendiam até o final da rua. Em cada uma em que parava deixava algum trocado e enchia a bolsa com algo diferente.

— Preciso encontrar um boticário, aquilo pelo que passamos foi assustador! Se vamos enfrentar algo semelhante outra vez, não quero sobreviver ao pior e acabar morrendo por causa de uma infecção ou qualquer merda assim — disse Gina, olhando para os lados.

— O que me preocupa não é o que vamos encarar, isto é, se chegarmos a encontrar algo, mas, sim, se a tripulação estará preparada — argumentou Tomas. — Nós fomos massacrados no meio daquela tormenta! Além de estarmos preparados para algo que venha do mar, devemos nos preparar também para o próprio mar.

— Ouvi Sigur comentando que o capitão encomendou quatro botes e um reforço para o suporte, desse jeito nem uma onda direta vai nos tirar do lugar.

Remi me encarou, pensando na relevância do que eu havia dito. Fazia sentido termos um plano B, mas o que mais o preocupava era outro assunto.

— Ficamos dias à mercê em alto mar. Se não fosse pela sorte da corrente não nos tirar da rota, teríamos canibalizado a tripulação toda. — Ele deu uma pausa, se aproximou de uma das barracas e comprou uma garrafa de vinho branco. Sem cerimônias arrancou a rolha e deu uma longa golada, depois ofereceu a bebida aos demais. Continuamos a nossa rota, dessa vez a passos lentos. — Se perdermos suprimentos em alto mar, isso será um problema. Foi preguiça não nos prepararmos para isso antes, mas agora, seja como for, devemos manter dois postos de estoque e aumentar os armamentos de longo alcance, como os arpões.

Ele estava certo, e por isso ninguém o questionou. A pior possibilidade em alto mar seria ficar sem água ou comida, pois, se não morrêssemos em um conflito qualquer, passaríamos a matar uns aos outros caso houvesse necessidade.

Helena voltou, animada, e apontou para uma casa grande logo à nossa frente; a porta escancarada convidava os passantes para o descanso. Uma senhora gentil nos acolheu, oferecendo uma boa comida e uma confortável cama. A porta se abria para um salão grande e iluminado, ocupado por mesas espalhadas pela área, regadas de carnes, massas e frutas, e com a presença de diversos grupos. Não houve negativas e também não demorou nada para que largássemos pelos cantos o que carregávamos e fôssemos saciar a fome.

Por fora a hospedaria parecia grande, mas ao adentrarmos era ainda maior. Os corredores se estendiam metros para o fundo e diversos quartos se distribuíam em todas as direções; as escadarias, com corrimãos ornamentados, subiam em meio círculo até o segundo e o terceiro piso, mas sendo o resto desconhecido a partir de então. Enquanto comíamos, a dona e alguns ajudantes iam para a frente do salão e voltavam para a cozinha, repetidamente. Eu observava com atenção e, aos poucos, me perdia em lembranças de uma vida passada.

— Acho que vou até a praia, chega de comilança por ora! — exclamou Tomas.

— Depois da fome que passamos, acho que vou comer por sete dias e que o Grande não me tome por mau! — retrucou Remi. O grandalhão jogou o corpo para trás ficando sobre as duas pernas traseiras da cadeira e levantou a camisa exibindo a barriga.

Gina gritou, fingindo estar horrorizada; Helena quase se afogou em risadas; e eu fiquei imaginando como o elo entre aquele pequeno grupo havia se intensificado em suas trajetórias.

— Eu o acompanho — declarei.

Tomas sorriu, aceitando minha companhia. Levantei, agarrado com meia garrafa de vinho, ao passo que ele puxou outra fechada da mesa. Seria uma longa caminhada.

 

Enquanto eu sentia a areia fina adentrar entre meus dedos, meus olhos se mantinham fixos nas estrelas, recordando de fragmentos do passado e sonhando com o que o destino tramava para nós. Tomas assobiava uma canção estranha, a qual deveria vir de sua terra natal. Direcionei um olhar apertado para ele; seus traços remetiam ao oriente médio, mas também tinham aspectos nortenhos.

— Que canção é essa? — perguntei.

— É algo que aprendi com meu pai.

— Como ele era? — compartilhávamos as palavras e também a bebida; dei um gole saciando a sede pelo álcool e logo depois passei a garrafa para ele.

— Complicado em certos aspectos, mas um homem justo. Antes da guerra minha mãe costumava cantar. — Tomas parecia mergulhar em suas lembranças. — Cheia de vida e boas maneiras, ela trabalhou no campo a vida toda, mas nunca deixou nada abater seu espírito. Cantarolava quando meu pai estava enfezado com algo, geralmente o trabalho que pagava mal ou alguma aposta que perdia.

— Achei que seu pai trabalhasse ao redor do mundo — comentei.

— E trabalhava, era um mês em casa, um ano no mar. Era assim que funcionava. Ouvir suas histórias era o ápice da minha juventude, mas quando a crise veio tudo mudou. Não havia trabalho no mar, pois ninguém levava nem trazia nada; os portos estavam secos, como carne sob sol a pino. Minha mãe faleceu durante a guerra, em um ataque a um mercado central, efeito colateral ou qualquer coisa assim, ao menos era o que o exército dizia para tentar nos consolar. Mesmo após tudo o que meu pai havia feito pelo seu país, nunca o ajudaram em nada — ele esticou para mim a garrafa quase vazia. Finalizei o último gole, arranquei a rolha da outra garrafa e despejei metade na vazia, agora caminhávamos com quantidades iguais. — Quando estava distraído fazendo qualquer coisa, meu pai incorporava algumas palavras da minha mãe, em geral músicas que ela mesmo criava enquanto cuidava da plantação e deixava sua mente fugir em um mundo desconhecido. Era mágico! O velho agia como se dançasse com ela, no mesmo passo, no mesmo ritmo, e quando estava assim, anestesiado com o prazer de relembrar… bom, era um pequeno conforto que tínhamos para nós. — De surpresa, sua voz soou alta e doce:



Não há noite sem estrelas,

Sobre o mar que te leva de mim,

Montanhas cantam e as árvores vibram,

Mais um toque do Grande há de vir,

Com acalento espero do lado de cá,

De mãos cheias como o coração,

Esperando essa e aquela estrela guiar,

Sua coragem de volta de onde partira então.

 

A coragem constrói,

Fortes e indomáveis corações,

Mas no âmago do bom ser,

Queima a bondade e paixões.

 

Há de voltar para mim, sorrir de emoção,

Enquanto espero essa e aquela estrela guiar,

Sua coragem de volta de onde partira então.

 

Dos amores que deixou,

Aventuras sob sol ou luar,

Das lembranças que se apegou,

Na luta em terra ou mar,

Sua virtude acalenta sua alma na tormenta,

Como o afago da esperança que o pequeno mantém,

A presença que faz falta e não…

Como você não há ninguém.

 

Ele cantarolou por alguns momentos e uma lágrima lhe escorreu pelo rosto. Aproximei-me, compartilhando da sua dor e alegria, carregados com a lembrança. Toquei seu rosto com todo o carinho que sentia por ele, sem sequer o conhecer o suficiente, mas sabendo, dentro de mim, que ele era justo, assim como suas palavras. Deitamos e deleitamos um ao outro, apenas com o mar e o céu como testemunhas.

 

Despertei durante a madrugada ao ouvir um som familiar. Tomas ainda descansava, com a garrafa vazia em mãos. Levantei e observei à minha volta, estávamos a sós. Notei que o som estava distante, mas, ao mesmo tempo, claro o bastante para mostrar a sua direção, então deixei Tomas descansando e parti, sozinho.

Caminhei pela praia por quase vinte minutos até sentir que o som estava se aproximando no mesmo ritmo em que eu avançava. Flagrei uma gruta, quase oculta, entre algumas árvores; no entanto, antes de entrar, olhei para trás e reparei que as luzes da cidadela ainda iluminavam o fervo que se estenderia por horas. Voltei a atenção para o interior da gruta e percebi que uma luz emanava lá de dentro, segui-a com alguns passos lentos, tentando evitar possíveis surpresas ou tropeçar em algo. Conforme eu avançava, a luz preenchia lentamente o caminho e, quando adentrei fundo o suficiente, avistei uma piscina natural.

A luz da lua entrava por um buraco no teto, iluminando as estalactites que a jogavam sutilmente para todos os cantos em ângulos bagunçados e proporcionando uma visão majestosa da piscina que parecia ser preenchida com prata líquida. Mais ao canto, uma silhueta saiu das sombras e mergulhou, surgindo então logo à minha frente. Caminhei, como se pisasse em folhas secas, e notei naquele olhar, grande e amendoado, nuances afetuosas.

Conforme eu me aproximava, fiquei de joelhos e avancei lentamente, enquanto a criatura mantinha apenas parte da cabeça exposta. Inclinei-me próximo à beira da piscina, ficando frente a frente com ela, e, sutilmente, mergulhei os dedos na água, movimentando-os em sua direção, com as pequenas ondas se espalhando. Ela mergulhou novamente, mas dessa vez como um ato de brincadeira.

Após alguns longos segundos, a criatura emergiu e, de perto, distingui como as brânquias gentilmente se abriam e se fechavam logo abaixo de um volume nas laterais do pescoço; e como uma pequena elevação se sobressaía, indo da testa até a nuca, marcando exatamente a metade da cabeça.

— Você me chamou? — perguntei, mas ela não respondeu, apenas continuou me observando de forma atenta. Seus olhos piscaram, fechando-se na vertical.

Insetos escondidos na pequena vegetação oculta na gruta compunham uma melodia graciosa que ecoava pelas paredes. Tentei, mais uma vez, romper o silêncio.

— Olha, eu fiz isso, para você — falei retirando com cuidado o desenho de um bolso. Desdobrei o papel e o descansei inclinado próximo à água. A criatura moveu sutilmente a cabeça, como se entendesse minha intenção. Não tenho certeza, mas, se pudesse adivinhar, diria que ela estava contente, por ser lembrada ou apreciada.

— Eu a vi no navio, no meio da tempestade. Havia algo a mais, lá? — perguntei esperando por qualquer sinal, expressão ou gesto.

No entanto, como resposta obtive apenas o silêncio. Ainda estando de joelhos, afundei as minhas mãos na água.

— Eu sei que você não queria nos fazer mal, mas havia algo a mais, não é? Você me puxou de volta!

Sem eu perceber, a criatura se aproximou, puxando suavemente a ponta dos meus dedos para mais dentro da água; encarei-a, tentando entender o que aquilo significava. Ela puxou outra vez, agora com mais força, mas depois a vi se afastar.

Estranhamente eu não sentia medo, mas, sim, um agridoce de curiosidade e apreensão. Despi-me e, lentamente, entrei na água fria. A criatura nadou em minha direção e, com presteza, suas mãos estavam sobre meu o rosto. Com toques gentis e gelados ela estudava cada aspecto da minha anatomia; seus dedos deslizavam sobre o meu cabelo, até que ela começou a apertar levemente as minhas orelhas.

Conclui que, independente do que ela realmente fosse, aquela criatura tinha, a princípio, uma forma humanoide; o crânio era semelhante ao meu, tanto em forma quanto em tamanho; igualmente os braços e as mãos, apesar de algumas partes se elevarem da sua pele, como nadadeiras que se esticavam dos ombros aos cotovelos, e seus dedos se limitarem em extensão por serem unidos por uma membrana quase translúcida. Ela não mostrava mais do que a cabeça e os ombros, contudo, por um longo tempo, seus toques e movimentos claramente intencionavam que ela estava me estudando, talvez buscando compreender as semelhanças. Com cuidado, levei meus dedos até ela, que se esquivou em um primeiro momento, mas que, em seguida, se aproximou. Meus dedos deslizaram por sua pele e me proporcionaram uma sensação curiosa, como se eu estivesse conhecendo uma nova forma de textura.

Porém, quando menos esperávamos, a paz na gruta foi quebrada por uma algazarra e violência vindas da escuridão. Uma rede se armou e foi jogada, de longe, sobre a piscina, caindo em cima da criatura que se enrolou ao tentar se debater. Tentei livrá-la daquelas amarras, mas meu corpo foi arrancado da água e atirado contra o chão, minha cabeça bateu forte e fiquei atordoado. Eu ouvia grunhidos estridentes proferidos pela criatura, que se debatia incessantemente, e, ao fundo, reconheci a voz de Augustus, que cantava vitória e exclamava palavras horrorosas.

 

Ora! O que o Diabo deixou sobre a terra,

Ora! Soturno seus passos entre nós,

Ora! Pertence ao Diabo tal fera,

Ó homens de Deus, banirão a vós.

 

— Não! — gritei, furioso, enquanto tentava me levantar. Mas logo fui impedido por um dos homens que o acompanhava, que se aproximou de mim e chutou meu rosto, me deitando outra vez.

 

Aos céus declarei uma e mais uma vez,

Assim como os males que perecem aqui,

Erguei-vos, homens puros, com avidez,

Ó homens de Deus, levaremos ao fim.

 

Augustus parou diante de mim mostrando os dentes com um olhar ferrenho. Em seguida, fechou a carranca raivosa.

— Que porra é essa? — perguntou ele. — Eu sabia! Sabia que tinha visto você com alguma coisa no mar, seu filho da puta, mas não imaginei que fosse com uma aberração dessas! — Ele se virou para os demais. — Vamos ficar ricos com isso! Tirem essa porra da água, vamos levar daqui!

— Deixem-na em paz! Argh! — faltavam-me forças.

Novamente fui golpeado, agora contra o estômago. Rolei, tossindo sangue. Outro idiota me puxou pelos cabelos e me agarrou com um mata-leão. Augustus também se aproximou e, com um pedaço de madeira, me bateu repetidas vezes. O sangue escorria sobre meus olhos de um corte no supercílio, e eu mal conseguia distinguir quem era quem.

— O velho está pagando uma nota para caçarmos essas coisas. E olha que sorte, encontramos uma aqui. Já pensou quanto dinheiro vamos fazer quando pegarmos mais? — Ele caminhou, cercando a criatura que se debatia dentro da armadilha e gritava, furiosa. As cordas entrelaçadas estavam suspensas por um tronco rígido de madeira, onde de cada lado havia um homem segurando a rede.

— Não é isso que ele busca — tentei dialogar. — Havia algo naquela noite. No mar!

— O que você sabe? — Augustus puxou uma faca da cintura, uma lâmina reluzente, e veio em minha direção. Senti o toque frio e afiado contra minha costela; no entanto, antes de ele perfurá-la, um corpo se chocou contra o de Augustus, jogando-o para longe.

Tomas, com o auxílio de garrafas, derrubou os dois homens que me seguravam. Outro correu sobre ele, mas acabou no chão, com um rasgo na garganta. Os dois que seguravam a criatura largaram-na de imediato e avançaram para cima de Tomas. Enquanto os três trocavam socos, esforcei-me para alcançar a rede e, mesmo sentindo uma forte dor por todo o corpo, consegui me agarrar ao tronco, rolando para a água e arrastando tudo comigo. Agilmente desenrolei as pontas da rede e abri uma brecha para a criatura fugir. Quando voltei à superfície observei-a, sendo encarado de volta. Estiquei a mão, sinalizando para que ela partisse, e quase me afoguei tentando gritar. Ela mergulhou e sumiu.

Outra vez fui arrancado da água e no chão vi Tomas, ajoelhado, rendido pelos homens que ainda estavam conscientes. Augustus sacou uma pistola e veio até minha direção, apontando-a para a minha cara.

— Filho da p… — flagrei a coronha vindo em minha direção e logo tudo se apagou.

 

Parte V

Acordei e desmaiei repetidamente, por várias vezes. Vislumbrei em certos momentos Tomas sendo arrastado pelas pernas contra um chão impiedoso; alguns gritos vindo de dentro de um salão com piso de madeira, outras conversas aleatórias no meio da mata.

Um zumbido ardia em meus ouvidos e uma dor intensa dominava minha cabeça; minha visão estava turva, fazendo com que eu enxergasse apenas borrões para lá e para cá. O sol queimava minha pele desnuda e o som das ondas, quebrando no casco, aos poucos ficava mais definido.

— Eles irão pagar pelas vidas que ceifaram! — dizia Augustus.

Aos poucos tudo ia ficando nítido. Tentei mexer meu corpo, mas notei que estava amarrado por uma corda no mastro, outro nó apertava meus punhos um contra o outro, assim como meus pés permaneciam atados a uma caixa. Demorou alguns segundos para eu conseguir entender o que estava acontecendo.

— Não foi para isso que paguei vocês! — O capitão bufou, irritado. — Eu só quero chegar na porra do mar e matar aquela criatura maldita!

— Vamos achar aquela que estava com Eli, pendurá-la à vista e esperar que venham buscá-la. Assim mataremos todos! — retrucou um dos homens.

— Seja como for, ele deve ser punido! Jefe e Luan estão mortos, e a culpa é deles!

— Eles se defenderam. — Alguém se manifestou contra Augustus.

— Ninguém precisava ter morrido. Aquilo não foi necessário, o que aconteceu deve ter sido premeditado! Eles devem ser punidos com a vida! — Ele revidou.

A tripulação se reunia no centro da proa. O capitão, distante, me observava apreensivo, até que se deslocou, pelo meio dos outros, em minha direção.

— O que aconteceu? — ele questionou, encarando-me.

— Eles… atacaram… — tentei responder, mas meu corpo estava tão judiado que eu ainda podia sentir o gosto do sangue na garganta.

— Eles estavam escondendo uma aberração! Provavelmente estava junto com o que atacou o navio, junto com o que já lhe causou dores no passado, senhor! – interrompeu-me Augustus.

— A besta que eu busco não cabe em uma rede, Augustus! — O capitão exclamou, agressivo.

— Mas a que levou sua senhora, sim. Os homens descreveram-na e, adivinhe só, o que eles dirão da amiga desse desgraçado é semelhante à sua descrição. — Augustus respondeu.

— Isso é verdade? — Ele perguntou, se voltando para mim.

— Eles a esconderam de nós e ainda podíamos ter morrido! — esbravejou outro.

Quando minha visão ficou nítida, observei, mais à frente, Tomas amarrado contra a outra coluna, inconsciente, cabisbaixo e pingando sangue; seu corpo nu estava marcado por hematomas e cortes.

— Tomas! — gritei, com a voz trêmula. — Seus malditos! O que fizeram com ele?

Augustus aproximou-se de mim e me golpeou no estômago. Gina tentou intervir, suplicando piedade ao capitão, no entanto, as ordens foram claras.

— Em dois dias estaremos em alto mar novamente e no perímetro objetivo. Resolvam isso à sua maneira, mas não quero mortes no meu navio!

Parte da tripulação parecia incrédula com a situação, enquanto outros praguejavam. Eu mal conseguia respirar, pensando apenas em como Tomas estava.

— Ele matou, então deve ser punido! Continuará amarrado pelo próximo dia inteiro, e quando chegarmos na costa ele será preso e responderá pelo seu ato! — exclamou o capitão. — Quero um relatório dos envolvidos.

Nesse momento, Helena e Remi tentavam contestar contra o veredicto do capitão, mas a tripulação, alienada e sedenta por justiça, apenas concordava. Logo que me soltaram, caí com os joelhos secos no chão, esforçando-me para conseguir me levantar; senti meu estômago apertar e mal pude me manter em pé. Remi aproximou-se para me ajudar, cobrindo meu corpo com uma manta; apontei para Tomas e, com auxílio, caminhei até ele. Alcancei o seu corpo e acariciei o seu rosto ferido, tentando trazê-lo de volta à consciência. Implorei por água e, com o apoio de Gina e Helena, tratei de limpar as feridas dele antes das minhas, sem me importar com os olhares inquietos que nos rodeavam, alguns com desdém, outros comovidos. O capitão já tinha dado as costas havia algum tempo e Augustus afastou-se, com o nojo estampado na face.

 

Parte VI

Passei o dia exausto e ainda muito ferido, mas sem sair do lado de Tomas, compartilhando sua desgraça e dor. Os dias que se seguiram não foram diferentes, Tomas demorou para se recuperar, assim como eu demorei para conseguir ficar em pé completamente. Quase tudo que estava fraturado acima da cintura ainda doía, como um prego atravessando a carne; no entanto, eu me esforçava ao máximo para não fraquejar e manter-me de olho nos poucos que importavam para mim.

— Não acredito que o capitão deu as costas para essa merda toda! — Gina praguejou.

Helena ajudava Remi na cozinha, enquanto eu, inclinado sobre um banco, descascava alguns vegetais.

— Ele só se importa com o seu próprio objetivo! Poderíamos nos matar, que ainda assim seríamos apenas um salário a ser substituído.

— Você tem razão, Eli, mas agora que estamos nessa precisamos nos cuidar — fitei Remi e concordei com as suas palavras em um gesto.

— Aquele merdinha do Augustus tem tramado algo! Ele puxa sacos e não se afasta da cabine do capitão, está planejando alguma coisa e eu não gosto nem um pouco disso – argumentou Helena.

— Não se preocupe, Helena. Hoje chegaremos ao perímetro e, como nos foi ordenado, desfrutaremos de um dia e uma noite de caça e isso bastará, pois, quando aquele idiota perceber que a viagem foi em vão, apenas voltaremos e acabaremos com esse pesadelo — Remi respondeu.

— Eli, eu sei que não devíamos falar sobre, mas você tem estado bem quieto ultimamente, afinal o que aconteceu naquela ilha? — perguntou Helena com um olhar curioso e preocupado. Ela, mesmo sem saber de nada, ainda estava ali, disposta a ajudar se fosse preciso.

— Todos estão confusos e Helena está certa em perguntar, porém você não é obrigado a respondê-la.

Encarei Remi e Helena. Não gostava de lembrar do que havia passado, mas eu não podia confiar em mais ninguém.

— Havia uma criatura. – Eu revelei.

— Então é verdade! — exclamou Remi, espantado.

— O que houve? Como ela era?

— É difícil explicar. Ela me chamou até lá. Já havia feito isso antes, na noite da tormenta, mas acho que ela apenas estava curiosa.

— Como não percebemos que eles o seguiram? — Helena perguntou.

— Não tinha como saber. Eles tentaram capturá-la e eu tentei impedi-los; Tomas ousou me defender, e essas tentativas todas resultaram nessa grande merda — respondi cabisbaixo.

— Mas se ela é real, Eli, o que vamos encontrar nessa noite?

— Não sei, Remi, talvez nada. Quando caí na água não vi nada, exceto a criatura.

— Talvez fosse apenas o mar! — Helena comentou, pensativa. — O mar e ela, claro.

— Será que existem mais? – perguntou Remi, fascinado.

— Não sei, Remi. Se existem, espero que estejam longe — conclui na esperança de que as palavras trouxessem ao menos um pouco de boa sorte.

 

O céu ainda não havia escurecido. Parte da tripulação estava reunida no refeitório, um cômodo pequeno e repleto de mesas, amontoando-se entre si e com conversas paralelas, causando um caos sonoro entre as quatro paredes. Lá, Remi e mais dois homens serviam o jantar, panelas enormes estavam espalhadas sobre uma bancada longa e conchas eram usadas para distribuir os grãos cozidos, os legumes e as carnes.

Tomas estava sentado ao meu lado, mas não estava falando muito; eu não sabia se era por dificuldade ou por algo pior. Por vezes tentei ajudá-lo, mas ele pareceu distante, furioso até. Levantei-me e caminhei em direção à dispensa, passei pela porta e, quando estava na metade do corredor, ouvi alguns resmungos que logo se tornaram uma algazarra vindo do refeitório. Larguei o que tinha em mãos e corri até lá. Em meio a confusão, os tripulantes trocavam socos e pontapés, e no meio da baderna avistei Remi protegendo Tomas. Aos berros, Augustus incentivava a confusão, ficando por trás de algumas mesas.

— Temos que sair daqui! — exclamei, puxando Helena.

Helena sinalizou para Remi e Tomas enquanto saíamos; Gina também nos seguiu, assim como outros.

— O que aconteceu? — perguntei, confuso.

— Augustus provocou Tomas… — disse Remi.

— Eu soquei aquele filho da puta! — Gina estava furiosa e Helena confirmou. Começamos a correr pela escadaria até a proa. — Ele estava dizendo que Tomas deveria pagar ainda mais pelo que aconteceu na ilha. Aquele merda!

— Aquele maldito insiste nisso.

— Ele quer minha cabeça há muito tempo – expôs Tomas justificando.

— O que quer dizer com isso? — questionei.

— Navegamos juntos algumas vezes. Na última ele quase morreu, um barril explodiu em um confronto com bucaneiros, foi… foi feio.

— Augustus quase morreu. Aquele psicopata e drogado tinha atacado uma das mulheres na tripulação, então foi preso na cela. Ele culpou Tomas por não o ter deixado sair para lutar — completou Helena.

— Mas se ele é assim, como tantos o apoiam?

— Eli, entenda, Augustus não entra nessas por dinheiro...

— Sim, Eli, a tripulação em sua maioria apoia — disse Remi, ajudando-me a encostar Tomas no parapeito. — A maioria é amigo dele e outros já trabalharam juntos ou lhe devem algo.

Ouvimos o pessoal vindo em nossa direção na proa, e sem demora eles estavam ao nosso redor. Entre eles, Augustus surgiu aos berros. Gina tentou ir para cima dele, mas Remi, sendo mais rápido, entrou na frente dela, puxando-a para trás e derrubando com um soco o homem logo à sua frente, um murro tão poderoso que o jogou metros para trás. Mais dois avançaram sobre nós e senti o aperto de Tomas em meu braço, flagrando, assustado, suas mãos ensanguentadas. Meu coração congelou.

— Tomas! — abaixei-me, acudindo-o.

— Eles me acertaram no refeitório, droga! — exclamou ele furioso.

— Não, não, não — sussurrei.

Perdi-me em uma mistura de raiva e medo. Tomas me fitou com um olhar confuso, toquei seu rosto buscando um pouco de conforto em confortá-lo. Ouvi os gritos de Helena ao ser arrastada por alguns dos tripulantes, então saquei a faca da minha bainha e golpeei dois deles no pescoço e na clavícula, ambos caindo ao chão. Remi derrubou mais alguns e escutei um disparo logo atrás de mim, onde Tomas havia acabado com outro.

A confusão tomou proporções maiores, poucos nos ajudavam, no entanto, eram o suficiente para equilibrar a briga. Ouvi gritos vindo do outro lado, na voz do capitão, mas não o vi. Corri, empurrando um pessoal até próximo de onde Tomas estava, agarrei um homem pelas costas enquanto ele golpeava Helena e cravei a lâmina em seu maxilar, jogando o cadáver rapidamente para o lado.

Entretanto, outro disparo ecoou do meio da briga. Meu corpo foi projetado para o chão no momento em que a bala acertou minhas costas; Tomas gritou quando me viu cambalear. Segurei-me contra o parapeito, parando frente a frente com ele, mas logo me puxaram com brutalidade. Rolei por alguns metros e, atordoado, consegui identificar Remi, Gina e o restante do pessoal, rendidos.

A lua finalmente apareceu dando clareza à situação desastrosa, fugindo por um momento ou outro por entre as nuvens carregadas. Relâmpagos estouraram nos céus, anunciando que a noite tomava conta dos mares. Uma agitação incomum jogava ondas que não se chocavam, mas que empurravam o navio com brutalidade. Por um momento, eu não sabia se era minha mente enganando-me ou se apenas eu percebia algo estranho no ar.

— Chega dessa palhaçada! — disse Augustus, passando aos empurrões por alguns homens. Ele sacou uma pistola e parou em frente a Tomas.

Eu gritei, implorando para que ele não fizesse nada, mas um dos seus parceiros me agarrou pelo pescoço, quase me sufocando, e me imobilizou. Remi debatia-se, então Augustus aproximou-se dele e o atordoou com uma coronhada.

— Nãã… — tentei gritar, inutilmente.

Augustus apenas me encarou. Tomas me observava enquanto cuspia sangue e tentava conter o ferimento, escorado contra a madeira.

— Eu disse chega dessa palhaçada! — Augustus sorriu para mim, deu mais um passo em direção a Tomas e ergueu a arma mirando em sua cabeça. Tomas o encarou, ofegante, e cuspiu contra o homem desprezível a sua frente.

O disparo foi estúpido, espalhando sangue aos montes pelo chão e espirrando em todos os que estavam por perto. Um chiado me ensurdeceu, e eu demorei para notar que era, na verdade, o meu grito de desespero ao presenciar uma cena tão brutal. Meu corpo fraquejou e mal senti minhas pernas, caindo sobre os joelhos.

“O que é isso?”, “Tem uma tempestade vindo!”, “Estou vendo algo se aproximando!”, aos poucos os gritos curiosos e temerosos se espalhavam pelo navio, sem que ninguém entendesse o que estava acontecendo. Os tripulantes se dividiram para todos os lados. “Tem algo no mar!”, diziam alguns. Nesse momento o capitão saiu da cabine, armado até os dentes e berrando ordens para todos.

Com o pouco de força que me restava, tentei me arrastar até Tomas. Gina e Helena vieram me ajudar, enquanto Remi entrava em um confronto ferrenho com Augustus, tentando desarmar o mau caráter.

Acompanhado por um estrondo ensurdecedor, outro relâmpago estourou nos céus, mas agora junto com uma nova nota. Um impacto fulminante acertou o navio, jogando todos contra o chão; um som intenso aumentava rapidamente e, quando me dei conta, uma onda cobria o navio, encharcando a proa. Fui arremessado para o lado, próximo de Tomas, então agarrei-me ao seu corpo e tentei ao máximo segurar no parapeito. Enquanto a tripulação se recuperava, observei a face desfigurada e sem vida do homem que amei, sentindo um buraco abrir-se em meu interior e arder profundamente, como se queimasse com o fogo do próprio inferno. Aos prantos, encostei a cabeça contra o peito ensanguentado e sem batimentos de Tomas.

Imediatamente outro impacto levou todos ao desespero. O capitão berrava sem parar; alguns tripulantes se aprontavam com as armas nas laterais e corriam para todos os lados.

“Estamos sendo atacados!”, gritavam.

Surpreendi-me ao ver, em meio a eles, Augustus perdido tentando enxergar o que se passava sob as ondas; esforcei-me para levantar, sem sucesso. Peguei a lâmina presa ao cinto de Tomas e, com uma faca em cada mão, tentei me arrastar pelo chão em direção ao assassino. Outra onda nos atingiu com ferocidade, resultando na explosão do casco e sugando para o fundo do mar parte dos tripulantes que estavam nos compartimentos inferiores. Fui jogado contra um mastro e, por sorte ou azar, Augustus caiu logo à minha frente. Dei tudo de mim para me erguer, escorado e ainda sangrando, fitei-o com ódio e cerrei os punhos com tanta força que minhas unhas perfuraram minha pele.

Gritei enfurecido; no entanto, antes de eu tentar avançar sobre ele, Augustus ergueu-se apontando a pistola em minha direção. O tempo parou. Percebi o caos que havia tomado conta do navio em meio à imensidão daquele deserto marítimo, uma garoa fina encharcava discretamente os corpos e o barco, já banhados pelas ondas. Então me entreguei ao destino, fechei os olhos e avancei.

Um ruído estrondoso ecoou pelo ar. Uma silhueta disforme, mas gigantesca, se ergueu ao lado do navio e desceu violentamente sobre a proa, esmagando vários tripulantes, inclusive Augustus. As madeiras explodiram na minha frente, me arremessando para trás. Outra silhueta se ergueu, agora se enrolando na verga e inclinando o navio ao arrancar a vela para fora. Forcei a visão para entender o que acontecia, e então flagrei o corpo de Helena e de Remi estirados ao chão. Corri, tentando alcançá-los, mas outra onda nos atingiu, empurrando-os para o fundo do mar. Busquei por Tomas, mas ele também já descansava naquela solidão obscura do mar.

Eu estava meio zonzo, mas ainda ouvia ao fundo os gritos da tripulação sendo massacrada; minha vista embaçou e outra onda empurrou-me até uma fissura da proa, onde eu mergulhei. No entanto, sem forças eu não conseguia nadar, e ainda atormentado e atordoado apenas deixei meu corpo afundar, repleto de medo, tristeza e solidão.

 

Salpicar

O velho então pediu uma pausa. O tatuador descansou a máquina e massageou os punhos doloridos, e por mais que estivesse acostumado com o trabalho, os anos já lhe cobravam a falta de exercícios regulares na vida atarefada.

— Caralho… — Dan disse surpreso, enquanto passava os dedos sob os olhos tentando ocultar as lágrimas que se acumulavam.

Um clima angustiado se instalou entre os amigos. Eli nunca havia contado nada sobre seu passado com tantos detalhes antes e, mesmo que parecessem uma fantasia, ainda que palpáveis, normalmente as histórias que saíam de sua boca eram quase como piadas ou horrores, clássicos de pescadores. Porém naquele dia havia algo a mais em todas as suas palavras.

Marco levantou-se para se servir de café e, ao passar por Eli, pegou firme sobre o ombro do amigo, sem dizer nenhuma palavra. O artista ainda relaxava os punhos, sem saber o que dizer, mas ansioso para entender o que aconteceria a seguir. Na mente de todos, era claro que tudo soava como uma metáfora, pois Eli costumava usar muito disso em suas narrativas. Excluindo a sereia ou o pensamento sobre aquilo ter acontecido exatamente daquele jeito ou não, o restante era crível, pesado e triste, tal como as palavras do homem que as contava.

— Quando você mandar! — comentou o tatuador que logo recebeu em resposta um aceno de cabeça de Eli.

— Mas você não morreu! — disse Dan, quebrando o silêncio que estranhamente se assentou na sala, todos hipnotizados apenas pelo som do batedor da máquina de tatuagem.

— Acordei horas depois boiando perto da costa sobre um destroço, com algas entupindo meus ferimentos.

— Não! — exclamou Marco. — Não acredito!

— Eu ouvi um navio vindo de longe em minha direção, mas também vi, logo à minha frente, um par de olhos amendoados me observando, com todo o resto de seu corpo escondido sob a água.

— Você não espera que acreditemos nisso, não é?

— Ora, Dan! Vocês acreditam no que quiserem! Vocês viviam me perguntando sobre o que aconteceu e sobre a minha tatuagem, agora que vocês sabem façam o que quiserem.

— Mas ela o salvou novamente? — perguntou Israel, com um sorriso bobo no rosto.

Eli encarou o jovem que se deleitava com a história.

— Mais do que novamente, ela sempre esteve por perto.

— Mas… o que destruiu o navio?

— Não sei, Dan, mas definitivamente era o que o capitão procurava. Bom, ele ao menos o encontrou.

A tatuagem já estava finalizada, mas todos ainda estavam atônitos com a história. Muitas teorias foram criadas nos minutos que se seguiram até o momento em que todos se despediram. No entanto, Eli apenas ouviu tudo com atenção e certo gosto pela graça que cada um colocava na imersão que tiveram naquela história.

 

Durante a volta para casa, Eli caminhou sozinho à beira-mar. Era uma noite bonita, com céu limpo e lua brilhante. Ele parou em frente ao deque antigo de Meradosia, que ainda resistia em pé mesmo após muitos anos e que se estendia metros além da praia para o mar. Ele caminhou devagar, reflexivo. Tirou da cinta uma faca e passou os dedos de leve sobre a lâmina. Chegou na ponta da estrutura de madeira e se sentou; observando o punho da arma, deslizou o dedão sobre a inicial gravada na estrutura de osso de baleia: T, ao mesmo tempo em que deslizou o dedo carinhosamente sobre a pulseira de fio amarrada em seu braço.

Eli olhou para o horizonte e admirou a lua que brilhava no céu, como uma explosão intensa, e então seus olhos flagraram um brilho mais à sua frente. Tal qual duas pérolas, um par de olhos amendoados o encaravam, com todo o resto do corpo oculto sob a água. Eli exibiu um sorriso e a criatura mergulhou.

Ele suspirou, guardou a lâmina e, quando foi se levantar, notou que havia algo preservado ao seu lado. Abaixou-se e puxou uma pedra enegrecida que continha um brilho que oscilava entre ciano e púrpura, enrolada em um cordão rústico feito com algas. Eli sorriu novamente, levantou-se, fitando o horizonte, e cochichou, como que para si mesmo:

“Essa é uma história para outro dia.”

 

Tatuagem e Sensibilidade


“[...] é a mais trágica das artes [a tatuagem]. Ou a única verdadeiramente trágica.”

Toni Marques concluíu seu livro “O Brasil Tatuado e os Outros Mundos” com esse pensamento pessimista que tento a todo o custo discordar. Mas o fato é que a morte é um fato, e a tatuagem se esvai com a vida. A escultura sobrevive aos eventos desastrosos da natureza, as pinturas se escondem em paredes ou dentro de vasilhames inquebráveis, mas a tatuagem se desgasta, enrruga e se transforma em cinzas ou, como dizia Lavoisier: “[...] nada se perde, tudo se transforma.”


Arrisco dizer que a tatuagem é arte, sim, o tipo de arte que transcende as outras artes, pois veja, se a arte é expressão, talvez a tatuagem seja nosso último ato de liberdade e a máxima do que buscamos expressar. Não é para ser poético, apenas para observarmos essa arte de um ponto de vista diferente, o qual nos permite compreender a necessidade de carregarmos em nossos corpos as nossas histórias, memórias que aos poucos se apagam, mas tornam a ganhar vida sobre uma tela viva. Nós.


Mas aqui não é um espaço para uma conclusão dramática da arte. É um momento para eu poder compartilhar, com você, o quão significativa ela é quando eu penso em contar histórias e foi graças a ela que eu consegui compreender o quão necessário é para mim, mostrá-las para você. Dar vida para uma pintura é como esculpir uma narrativa, ela precisa ser simbólica, sim, mas também ter sua carga de verdade, é como a fantasia e a sua crítica nas entrelinhas, o falar sobre criaturas mágicas e mundos fantásticos, mas apontar a mediocridade de preconceitos tão reais que mexem com nossos sentimentos e podem até moldar o caráter.


Quando me lembro das vezes em que foi descriminado pela cor da minha pele, a forma como meu cabelo é diferente ou mesmo por ser queer, me lembro também o que sempre me motivou a escrever, a traduzir minhas dores, medos e frustrações para minhas personagens, a criação de eventos traumáticos que nem de longe refletem a realidade, mas tentam ilustrar essas sensações; mas nem tudo é só dor, pois essas historias também narram momentos de contemplação, amor, felicidade e prazeres... há tanto para ser dito... e pensando aqui comigo, isso tudo parece manter uma linha tênue com a tatuagem, ela também toma sua parte, traduzindo o bom ou ruim em uma expressão que talvez não seja qualquer um que entenda, mas não importa. No final, tal como tanto defendi no meu TCC quando explorei a maravilhosa arte da tatuagem e o que nos leva a marcar nossos corpos, em Telas Vivas, acho que uma dos pensamentos de conclusão encaixam perfeitamente no que quero dizer com tudo isso, além de que escrever e desenhar, é minha maneira de demonstrar ao mundo e as pessoas... que eu me importo, e por mais que a arte se apague com o tempo, ela sobrevive como o eco de suas artistas e telas.


Câmbio e desligo.