reminiscência
contos | 10 min de leitura 📖
Esse é um breve conto, criado para e publicado pela editora Cavalo Café na antologia Insólitos. Reminiscência tem uma narrativa forte e punitiva, não escondendo com beleza aspectos cruéis da realidade, porém, também busca trabalhar a fantasia como gatilho das percepções históricas. Um conto breve e, espero que, prazeroso.
Um agradecimento especial para toda a galera que deu like no tweet e tornou essa publicação realidade e também as Apoiadoras. <3
Sugestão para acompanhar a leitura:
Reminiscência
“Ela estava presa, com as garras da Onça cruel rasgando sua pele e manchando o seu manto branco de vermelho escarlate. Do chão, as tribos em pânico entoavam canções tentando animar sua deusa que perecia diante do poder do inimigo, eles não acreditavam quando viam o brilho agora todo vermelho no céu, como se sangrasse sobre a Terra.”
As palavras da velha não eram para assustar, mas enriquecer a criança
com fragmentos daquilo que fazia sua cultura forte, suas histórias e
origem. A menina se revirava com a cabeça sobre o colo da anciã, que
não perdia o fôlego. A noite estava agitada, o vento vindo do litoral
prometia uma tempestade. As luzes das fogueiras fora da oca
atravessavam pelas frestas da madeira e ilustravam a narrativa com
formas abstratas.
— Yasy gritava, tão alto que o próprio mar se enfurecia tentando
desgrudar da Terra para ir ampará-la, mas era em vão, pois ele tinha
uma dívida e não podia apenas nos abandonar. Foram horas de agonia,
até que um raio de esperança se ergueu no horizonte.
— Ele trazia calor, vovó? — A velha encarou a criança com um sorriso
estampado de orelha a orelha.
— Ela trazia, sim, o calor e sua bravura. A Onça sentiu o coração na
garganta e tremeu quando o rugido de Kûarasy acalmou o mar e os
humanos, e assim que deu as caras, a criatura se debateu cega do
brilho do Sol e caiu do céu, foi engolida pelo mar e desapareceu para
sempre.
— Mas e a Lua vovó?
A velha limpou a garganta sutilmente.
Sob as garras, a luz se desfez,
Temente, mas sem perecer,
Em seu âmago a faísca se fez,
Encharcada por si.
O véu de uma cor, como cascatas,
E entre as tribos o temor,
De vermelho cobria as matas.
O horizonte rugiu,
Um feixe surgiu,
Com poder o Sol emergiu,
E brandou, a criatura puniu,
E a Lua que chorava riu,
De seu amor, nem dor sentiu,
Apenas renasceu.
O véu de uma cor, como cascatas,
E entre as tribos o fervor,
Da vitória cobria as matas.
A voz da velha preenchia a história e a imaginação da criança, ela
piscava com os olhos pesados, mas ao mesmo tempo lutava para se manter
acordada e acompanhar a história, se recordava de seus pais que, ainda
em vida, tiravam horas da sua noite para cantar e aproveitar a
presença que ainda tinha da sua avó como conforto para o vazio que
permanecia em seus corações tão jovens. A velha abraçou a pequena em
seus braços com lágrimas escorrendo sobre suas bochechas, se recordava
de momentos semelhantes com seu único e precioso filho, em tempos de
paz, tempos mais simples. Sentiu o calor do corpo de sua neta contra
seu peito e aquilo lhe fez pensar em tudo o que havia perdido, mas
assim como a Lua, ali tinha sua segunda chance, pois isso era o amor,
ela entendia bem disso. Quando a criança pegou no sono, a velha apenas
permaneceu ali, sentada ao seu lado, ouvindo o estalar da fogueira e o
assobio do vento ao passar pelos vãos das construções do pequeno
vilarejo. Ela flagrou fagulhas da luz do luar escapando pelo telhado
amarrado e suspirou ao imaginar que toda aquela beleza estrelada logo
estaria oculta sobre as nuvens carregadas.
Do lado de fora, sons de movimentos lhe despertaram a curiosidade.
Sorrateira ela se afastou da neta e caminhou até a porta, espiou e não
viu nada além de ocas fechadas, das fogueiras agitadas, um ou outro
guerreiro e a escuridão, mas foi de um estalo incomum que lhe causou
um calafrio sinistro na espinha.
Ela saiu pela porta e contornou com passos leves a parede da oca,
ouviu novamente o estalo, agora mais perto e mesmo com o olhar
cansado, mas com anos de vida no meio da floresta, ela flagrou o
brilho tímido e mortal de um rifle.
Seu coração disparou.
Rapidamente voltou para dentro da oca, se envolveu em uma manta e
acordou sua neta.
— Jaci! Jaci! — sussurrou.
— Vovó?
Logo ela ouviu os passos se dispersando em todas as direções. Uma
agitação aos poucos tomava conta das instalações vizinhas. Notou pés
se arrastando ao lado da sua parede, puxou rapidamente o cobertor
sobre a criança.
— Silêncio.
Se afastou e colou o corpo ao lado da porta.
A madeira rangeu ao ser empurrada. Na escuridão, a velha arrancou uma
arma afiada da manta, uma silhueta adentrou e foi surpreendida com um
golpe ágil na jugular e empurrada para o canto à espera da morte.
— Jaci! — disse a velha, se aproximando da criança. Ela abraçou a
menina o mais forte que pôde, já ouvindo o conflito tomando conta do
vilarejo.
— Vovó! — exclamou a menina ao ver uma explosão vermelha tomar conta
do teto da oca, foi um breve segundo para que tudo estivesse em
chamas.
— Preste atenção! Você precisa fugir, está bem? Entre na mata, vá até
o riacho e avise os outros. Por favor, Jaci, não olhe para trás,
apenas chegue ao riacho e diga que os estrangeiros invadiram nossas
terras. — A menina a encarou horrorizada, nova demais para compreender
a gravidade do que acontecia, mas com idade suficiente para saber que
se tratava de vida ou morte.
— Jaci! — insistiu a velha. — Kûarasy vai te proteger. Chegue ao
riacho, não pare por nada!
A menina se levantou, a avó cobriu seu corpo com um tecido escuro, o
suficiente para lhe aquecer e camuflar na mata. Ela abraçou outra vez
a menina e foi até a porta. Espiou. Do lado de fora o caos era
dominante, os nativos enfrentavam os forasteiros em um combate
ferrenho e sangrento. Com toda a dor que jamais imaginou que sentiria
outra vez, ela pegou a menina pelas mãos e correu, desviando das lutas
corpo-a-corpo, pedidos de socorro e gritos de horror.
Passou ágil pelas fogueiras no centro do vilarejo, contornou algumas
ocas se ocultando nas sombras e evitando dar as caras onde havia luz,
sem sequer alcançar o limite das instalações, uma explosão contra suas
costas a derrubou brutalmente. A criança caiu ao seu lado. O soldado
avançou sobre ela, ergueu o rifle segurando em sua ponta para usar
como bastão, mas antes de desferir o golpe, uma lança atravessou sua
garganta.
A menina encarou sua avó. Com toda a fragilidade que lhe restava, a
velha soltou sua mão.
— Vá!
A menina se levantou e correu, passou pelas últimas instalações se
esforçando para não olhar para trás, entrou na mata ofegante, mas
antes de sumir completamente, algo a agarrou no calcanhar. Ela bateu
contra o chão, se virou aos gritos, um homem a segurava, mesmo se
debatendo, lhe faltavam forças para se livrar. O homem então se
ajoelhou, ainda a segurando, ela fitou a silhueta demoníaca e o fogo
consumindo o seu lar e tomando a vida de seu povo, o inimigo puxou uma
lâmina longa da cintura e sem hesitar, tomou a vida alheia, aos berros
com nada mais do que insanidade no olhar.
Satisfeito com seu feito. Ele se levantou cambaleando e se afastou,
voltando para o massacre.
A consciência de Jaci aos poucos a abandonava, naquele momento, o seu mundo parou. Não ouvia os gritos de terror, não sentia o cheiro das madeiras e corpos queimados, não sentia o frio e nem a dor dos ferimentos em seu corpo, apenas a voz de seus pais e sua avó unidos em um único tom doce. E com o que lhe restava de forças, ela entoava uma canção aos sussurros.
Como o vento que canta,
Quando passa e levanta,
Folhas e flores ao amanhecer,
Mesmo que haja neve, chuva ou areia.
Da montanha ele desce,
Ao seu belo nascer,
Trazendo não só a luz,
Mas calor para aquecer.
Sol, o Sol, da montanha ele desce,
Trazendo o brilho para a mata crescer,
Pois há vida, muita vida,
Mais vida para aquecer...
Do meio da escuridão, um brilho refletiu nos olhos da menina, se
tornando cada vez maior e intenso. Lentamente a luz tomava forma,
crescia como um humanóide, sobre duas pernas, com dois braços, uma
cabeça, possuía garras que saíam das pontas dos dedos, chifres longos
que enfeitavam a cabeça, a pele cintilava tons desconhecidos e marcas
de guerra estavam pintadas com barro por todo seu corpo e sua face. A
criatura se aproximou, deixando um rastro de luz por onde pisava.
Parou ao lado da criança quase desfalecida em seu último sopro de vida
e se abaixou.
— Você se lembra de mim — disse a criatura.
— Sinto seu calor — respondeu Jaci.
— Mas mesmo agora, você ainda lembra de mim! — A criatura exibiu um
sorriso largo, fitou tudo ao seu redor e levou a mão sobre a face da
menina, afastando os cabelos que lhe cobriam os olhos encharcados com
sangue. — Jaci, como minha Yasy. A besta também rasgou sua pele, meu
amor.
A criatura se deitou ao lado da menina, enquanto a observava, chorava
e tentava encontrar palavras para o que sentia e queria
compartilhar.
— Parece que é um castigo. Comigo, com meu povo — disse a criatura. —
Me ajude a entender o que há de tão ruim além mar que corrompe nossa
terra.
— Talvez apenas seja… como deve ser.
— Não deveria ser assim. — O ser rebateu.
— Faça ser diferente, então.
Kûarasy se levantou, segurando a criança em seus braços. Um brilho
majestoso cobriu os dois.
— Façamos diferente, então.
O feixe de luz intenso aos poucos diminuiu e o reflexo nos olhos da
criança se tornou um ponto se esvaindo até sumir. A menina se ergueu
exalando uma aura intensa de seu corpo, seus olhos brilhavam como a
lua cheia, seus primeiros passos foram pesados, a mata se abria em seu
caminho. Conforme avançava pelo vilarejo, onde havia fogo, ele se
apagava, onde haviam corpos caídos, eles se erguiam, onde estava
molhado de sangue, secava, tudo voltava ao seu lugar, assim como os
invasores recuavam de volta para a costa. Até que ela parou no meio da
mata, no meio da escuridão.
Do corpo da menina, espectros monstruosos surgiram compartilhando seus
sentimentos, eram formados por criaturas meio felinas, com chifres e
presas brilhantes. O solo ocultou mais do que raízes, assim como as
árvores que camuflavam olhares ardentes e defensores. Ali estavam as
testemunhas de Kûarasy, certos de que nada mais iria ameaçar seu povo.
O grupo de forasteiros armados avançou sorrateiro pela mata.
Sem perceberem, silenciosamente um a um começou a desaparecer.
Um deles se afastou da maioria, se sentindo ofegante com a neblina que
descia na floresta.
Ele encostou em um tronco, uma sombra
surgiu sobre suas costas e o partiu em pedaços antes mesmo que se
desse conta de que não estava sozinho. Outro sentiu o pé afundar em
algo que parecia uma poça, logo foi puxado para as profundezas da
terra. E das sombras, a criança observava, seus espectros se
espalharam e destruíram tudo aquilo que um dia poderia lhe trazer
dor.
Assim, o grupo de forasteiros armados, desapareceu pela floresta.
O véu de uma cor, como cascatas,
E entre as tribos o fervor,
Da vitória cobria as matas.
A voz da velha preenchia a história e a imaginação da criança. A
menina se aninhou nos braços da avó, que respondeu ao gesto
amoroso.
— Kûarasy nos protege, vovó.